a gorda — Isabela Figueiredo
Imobilizo-o com as pernas e com os braços e escoiceio. «Não te mexas, não te mexas», suplico. «Deixa-me ser eu.»
Esfrego-me na coisa só minha, inútil, só minha, sem serventia para mais nada, afundo-me na terra de carne, sangue e fogo, até o cérebro sentir, ao fundo, cada vez mais perto, ao seu redor, uma emanação de dor opiácea, que se mostra e esconde, como o lume num isqueiro gasto que procuro acender. Sacolejando-me, procuro o ponto de ignição, vem coisa imaterial ao redor de mim, vem, e há um instante em que agarro essa névoa por um braço, perna, um farrapo, a agarro toda, a puxo com força, a seguro, tenho-a, prendo-a, e, mantenho-a, deixo-a rebentar no momento em que cruza inteira o tamanho do meu corpo, não sei em que direcção, vai, não sei quem sou, não pertenço a lugar nenhum, sexo e cérebro são uma esfera de luz-prata na qual nos suspendemos por segundos, não mais, cegos, só dor luminosa no lugar do nada, ópio que não pode durar mais ou morremos, e está a ir, os restos tornam-se mais fracos, acaba, agora só a carne usada, dormente, deixando-nos moles, esgotados, humanos de novo, ofegantes, os dois corações pulsando um contra o outro, cada um em seu peito, ignorantes.
Não nos dizemos nada. Não há nada a dizer. Inspiramos e expiramos, fundo, várias vezes. Voltamos a nós, à vida, porque morrer ou nascer ou lá o que é transtorna. Voltamos a nós, olhamo-nos e pensamos: «O que foi isto, bolas, o que foi isto?» «Penso que já podemos morrer, David.» Mas não lhe disse.
(...)
A história não se conhece antes de conhecer. Não segue exemplos, repete erros e recomeça a cada era.
Estou longe de perceber que o senhor diretor tem razão, e mais longe ainda de compreender que é possível conquistar ilhas de liberdade e gozá-las momentaneamente. Não posso saber, ainda, que nos cabe a responsabilidade de estabelecer as fronteiras da liberdade que nos permitimos gozar. Nós e a polícia de costumes em nós.
(…)
Aos que me amaram fui-os vendo como carcereiros, antagonistas causadores de impedimentos à minha viagem. Amem-me, mas libertem-me. Só posso retribuir o amor sem sujeição. Não me tolham os passos. Não me culpem e não me cobrem. Nada.
Referência:
FIGUEIREDO, Isabela, A Gorda, Lisboa: Editorial Caminho, SA, 2016: 51-63