no castelo do Barba Azul — George Steiner
Não é difícil ver como a intensificação e a extensão da dimensão erótica poderá ter sido uma contrapartida das conquistas europeias revolucionárias. (…) O facto de a nossa própria sexualidade ser nitidamente pós-romântica, de muitas das nossas convenções decorrerem directamente da redefinição do valor da esfera erótica ao longo do período que vai de Rousseau a Heine, não contribui para tornar a análise mais simples.
Mas considerando, no seu conjunto, estes diferentes aspectos, podemos dizer com segurança que tiveram lugar na Europa transformações imensas no campo dos valores e da percepção, ao longo de um lapso de tempo mais denso e mais vivamente registado pela sensibilidade individual e social do que qualquer outro de que tenhamos informação fidedigna.
(...)
Deveremos continuar? Será razoável supormos que toda a civilização elevada desenvolve tensões implosivas e movimentos de autodestruição? Tenderá necessariamente um agregado de equilíbrio tão delicado, ao mesmo tempo tão dinâmico e tão frágil, como o de uma cultura complexa, para um estado de instabilidade e, por fim, explosão? O seu modelo seria então o de uma estrela, depois de ter atingido uma massa crítica, uma equação crítica das trocas de energia entre a organização interna e a superfície irradiante, que desaba para dentro, projectando, no preciso instante da destruição, esse grande fulgurar visível que costumamos associar às grandes culturas na fase terminal. Será a fenomenologia do tédio e do anseio pela dissolução violenta uma constante na história das formas sociais e intelectuais a partir do momento em que ultrapassam um certo limiar de complexidade?
(...)
A noção de um desejo de morte, actuante na consciência tanto individual como colectiva, é, como o próprio Freud sublinhou, um tropo filosófico. Vai manifestamente para além dos dados psicológicos e sociológicos disponíveis. Mas trata-se de uma sugestão de uma força extraordinária, e o modo como Freud descreve as tensões que os costumes civilizados impõem às pulsões fundamentais insatisfeitas não perdeu a sua validade. O mesmo se diga das indicações, abundantes na literatura psicanalítica (pós-darwiniana, não o esqueçamos), que apontam para a existência nas relações entre os homens de uma tendência inevitável para a guerra, para uma afirmação suprema da própria identidade à custa da destruição mútua.
(...)
Mas este assassínio não bastava. Só um psicólogo com o génio de Nietzsche e a sua vulnerabilidade seria capaz de experimentar directamente o “assassínio de Deus” e sentir nos seus nervos esse final libertador. Havia à mão uma vingança mais azeda, um meio mais simples de resgatar os séculos de má fé, de ressentimento inconsciente mas tenaz contra o ideal inatingível do Deus único. Matando os Judeus, a cultura ocidental eliminaria aqueles que tinham “inventado” Deus, que, embora imperfeitamente, embora de modo limitado, haviam sido os porta-vozes da Sua intolerável Ausência. O holocausto é um reflexo, tanto mais intenso quanto mais demoradamente reprimido, da consciência sensível natural, das reivindicações instintuais de politeísmo e animismo. Dá voz a um mundo ao mesmo tempo mais antigo do que o Sinai e mais recente do que Nietzsche. Quando, durante os primeiros anos do governo nazi, Freud procurou transferir para um egípcio a responsabilidade pela “invenção” de Deus, estava, talvez sem o saber plenamente, a proceder a um gesto de sacrifício propiciatório.
Referência:
STEINER, George, No Castelo do Barba Azul, Lisboa: Relógio d’Água, 1992