a crescente desumanização mundial

A noção de um desejo de morte, actuante na consciência tanto individual como colectiva, é, como o próprio Freud sublinhou, um tropo filosófico. Vai manifestamente para além dos dados psicológicos e sociológicos disponíveis. Mas trata-se de uma sugestão de uma força extraordinária, e o modo como Freud descreve as tensões que os costumes civilizados impõem às pulsões fundamentais insatisfeitas não perdeu a sua validade. O mesmo se diga das indicações, abundantes na literatura psicanalítica (pós-darwiniana, não o esqueçamos), que apontam para a existência nas relações entre os homens de uma tendência inevitável para a guerra, para uma afirmação suprema da própria identidade à custa da destruição mútua.
— George Steiner, 1992:34
 

Com base na citação acima presente, retirada da obra No Castelo do Barba Azul – Algumas Notas para a Redefinição da Cultura de George Steiner, ressalta-se a ideia da presença de um impulso destrutivo intrínseco à natureza humana. Porque matar o outro significa e sempre significou eliminar um obstáculo que impede a afirmação e concretização plena dos desejos individuais. Nesta obra, Steiner apresenta o passado como um momento em que aconteceram coisas, isto é, um lugar repleto de movimento. Por contraste, o tempo presente é descrito como o lugar onde o indivíduo se anula a si mesmo, agindo estrangulado pela vontade contida de Existir de acordo com o seu Sentir; e de não poder Ser, visto esbarrar com o muro intransponível de uma sociedade disfuncional.

No capítulo “Humanity on the Move” presente na obra Liquid Times (2007), Zygmund Bauman (1925-2017) aborda — de um modo geral — os efeitos nocivos causados pela globalização. Por um lado, a população mundial nunca foi tão extensa como nos dias de hoje, por outro lado, a febre capitalista consumiu todos os recursos terrestres usados anteriormente para a subsistência das comunidades a vários níveis. As pessoas deixam de ter acesso a estes recursos porque, na maioria dos casos, pertencem a privados ou porque o solo — a terra em si — já está alterada devido a tantas investidas do capitalismo para extrair dela tudo quanto possível. Deste modo, nem o planeta fornece recursos suficientes à manutenção de uma conjuntura mundial caracterizada pela sobrepopulação. Por este motivo, a criação de uma sociedade justa para todos e que satisfaça as motivações e os objectivos de cada um apresenta-se como impossível.

Assim, a população nunca foi tão numerosa e dela advém a impossibilidade de criação de uma estrutura política/económica/social que consiga suportar esta densidade humana e que, ao mesmo tempo, vá ao encontro dos anseios e satisfação de todos. A evolução do homem para a tão aclamada “civilização” e tudo o que esta acarreta, não esbateu nem diminuiu este impulso para matar, pelo contrário, acentuou-o — empurrando o indivíduo para o nada. O conflito é inequívoco, embora reprimido pela consciência de uma historiografia que regista o terror da morte e da guerra aberta.

Nesta sequência, a “destruição mútua” abordada por Steiner advém, precisamente, desta tensão, do pânico de querer ver as pulsões individuais satisfeitas e de não conseguir — o modelo de organização social tem sido incorporado pelo indivíduo no processo de socialização e está inscrito no subconsciente colectivo — traduzir os seus impulsos em acções concretas, o que entrega o indivíduo a uma luta interior violentíssima que põe em confronto duas características intrínsecas ao Ser Humano, a sua individualidade e a sua inserção numa comunidade. Por isso, caminhamos para uma crescente desumanização: seres passivo-activos numa sociedade que todos queremos que funcione para que a sobrevivência seja possível, mas que, por outro lado, condiciona de uma forma bastante significativa a movimentação e a livre realização dos desejos. Instalou-se assim um clima de ansiedade originado numa necessidade profunda de sair desta massa anónima enfumarada e desprovida de self, para reivindicar a ocupação de um lugar de destaque, sendo que todo e qualquer indivíduo se considera merecedor deste espaço. Este pânico reprimido entre o social e o individual conduz à autodestruição de que fala Steiner.

Concluindo, por um lado o Ser Humano sabe que tem de viver em sociedade e por isso há um conjunto de impulsos individuais que são reprimidos em prol desta unidade, por outro lado, sente o direito (a liberdade?) de traduzir a sua vontade individual em acções concretas. Vivemos numa negociação constante e ininterrupta entre o balanço da sociedade e a Urgência de expressão plena do “eu”.

 
Colagem de Rachel Caiano

Colagem de Rachel Caiano

Patrícia

Patrícia Moreira nasceu em Lisboa em 1990. Licenciada em Tradução (Inglês e Castelhano) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2012) e Teatro (Actores) pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016). Complementou a sua formação académica com João Brites, Rui Pina Coelho e Eugénia Vasques. Vencedora do concurso literário “Belas Letras” organizado pelo Instituto Politécnico de Lisboa (2015) com o texto "Da Seiva e do Sal". Iniciou o seu percurso como actriz na Companhia Animateatro e colaborou com a Rugas Associação Cultural. Em cinema trabalhou com Pedro Cabeleira na longa-metragem "Verão Danado". Em 2019 co-criou com Diana Narciso o espetáculo "Mater Aviam". Co-fundadora do coletivo outro, co-criou e interpretou o espetáculo "as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos". Em 2020 criou e interpretou a performance-instalação "SECRETUM" na Estufa Fria de Lisboa. Fundadora da Tremor Associação Cultural.

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