ilustrativo pleonasmo ilustrativo

A palavra "ilustrativo" é geralmente aplicada com tom pejorativo em relação aos objectos artísticos que despejam chuva sobre o molhado. Fugimos destes bichos e vomitamos um pouco quando finalmente vemos como são redundantes e circulares (aqui está um), e já não conseguimos “desvê-los” nem tão pouco prestar-lhes o mesmo respeito ou ceder-lhes a mesma atenção.

O “ilustrativo” como adjectivo qualificativo de uma obra é mais uma das camadas críticas que o apreciador de arte gosta de vestir, e o trabalho do artista também deve partir da procura de desvios a essa justaposição de linguagens. O ilustrativo não nasce de um só elemento, mas sim do cruzamento e sobreposição de duas ou mais linguagens. Ilustra-se alguma coisa. No teatro e no cinema, por exemplo, esse cruzamento faz-se geralmente entre texto e imagem, ou texto e gesto, duas linguagens diferentes que dialogam entre si. As duas servem-se tanto melhor quanto mais distantes estiverem uma da outra, mas não tão distantes que percam a ligação.

 
Retroprojecção de mini-projector, Sílvio Vieira, 2018

Retroprojecção de mini-projector, Sílvio Vieira, 2018

 

A relação entre linguagens é produtiva — a relação entre o texto dito e a acção do corpo no espaço produzem sentido e outras imagens no observador — e é mais "produtiva" quando estas se encontram ligadas apenas por um fio, pelo mais ínfimo ponto de contacto que o observador terá todo o prazer em descobrir. O espectador abre a boca em espanto, divertindo-se a ligar pequenos pontos numa teia de sentido que é só dele e que ele julga, afinal, ser feita para ele. O espectador activo e interessado (sobre os outros não me debruço) gosta de construir pontes, prefere mexer-se, a que as coisas venham ter com ele; prefere ter de fazer sentido daquilo que vê, a comer comida mastigada.

“Ilustrar” significa tornar ilustre, esclarecer, elucidar, instruir, adornar. Ilustrar tem, assim, uma grande componente educativa, didáctica e até infantil na sua definição. Já “interesse”, etimologicamente, significa estar entre algo (inter), estar num intervalo, estar distante. Este intervalo é uma terra desconhecida e desperta interesse nos mais curiosos. Se por esta distância entendermos diferença, temos interesse pela diferença e por aquilo que não se cola ou sobrepõe inteiramente a nós. O ilustrativo é pouco interessante (mais um lugar-comum que por isso mesmo ilustra perfeitamente o meu ponto) porque a arte não deve ser didáctica. Tenho sempre algum receio em acrescentar algo depois de a arte deve ser... mas aqui arrisco. Didácticos são os livros de escola e os tutoriais do youtube, que não escondem nada, que põem tudo às claras e têm um propósito muito específico. A arte deve preservar alguma medida de distância para se afastar deste domínio da moral directa, do apelo à massa (não esparguete, mas podia ser), da mãozinha no coração e lagriminha no olho, do storytelling publicitário e novelesco.

Antes de dar por concluído este fragmento gostaria de propor dois tipos de ilustrativo que me parecem existir:

  1. O ilustrativo básico de dois elementos que se encontram, juntam e não descolam. Contar a mesma história pela oralidade e pela acção, e escolher mostrar apenas aquilo que está ao centro, a cor que salta à vista. No texto diz que mato alguém e mato alguém, diz que beijo e beijo, esta frase exprime raiva e por isso grito; e por aí fora.

  2. O ilustrativo periférico. Procuro outras pequenas cores, as palavras não ditas, as mentiras, a periferia. Pego numa história e decido contá-la através daquilo que quase não está lá, mostro as unhas da princesa, a borbulha, a rugosidade da pele, o herpes ocasional, o frigorífico, o pé Nº 41, as relações que mantém com o barbeiro (sim, barbeiro) e as coisas que diz quando fala sozinha e durante o sono; e deixo de parte os olhos azuis, os cabelos loiros e o príncipe. O exemplo é básico e fácil, mas o objectivo deste artigo nunca foi o de pôr estas ideias em prática, nem o poderia fazer.

Finalmente, resta dizer que se a justaposição de linguagens, em que palavra e gesto coincidem, acaba por anular o objecto e o interesse em decifrá-lo, a hipótese não ilustrativa será sempre uma de desvio, de perversão, de desencontro entre linguagens, capaz de manter viva a curiosidade. O desencontro não deve ser total, mas quase total, e quando assim é existe um acrescento, o objecto torna-se maior e mais amplo.

Sílvio

Sílvio Vieira nasceu em Leiria em 1994. Estudou Sociologia no ISCTE-IUL e é licenciado em Teatro (Actores) pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2018). Complementou a sua formação académica com Miguel Seabra, Sofia de Portugal, Philipp Rost, Mike Bernardin, Monika Gossmann e Jan Pappelbaum (cenografia). Iniciou o seu percurso como actor no Teatro da Cornucópia, sob direcção de Luis Miguel Sintra, de onde destaca os espectáculos "Pílades", "Lisboa Famosa (Portuguesa e Milagrosa)" e "Hamlet". No Teatro Nacional D. Maria II trabalhou com Tiago Guedes, Álvaro Correia e Miguel Loureiro. Em teatro trabalhou ainda como actor em espectáculos de Ana Zamora, Ricardo Neves-Neves e Carlos J. Pessoa. Intérprete em performances de André e. Teodósio e Patrícia Moreira. Em cinema trabalhou, entre outros, com Jorge Cramez, João Leão e Pedro Cabeleira. Lecciona teatro a um grupo de pessoas com doenças de risco na associação Ser+ de prevenção e desafio ao VIH. Do seu trabalho autoral destacam-se a co-criação do primeiro espectáculo da companhia de teatro As Crianças Loucas, da qual faz parte desde 2017; o texto e co-criação de "Dentro3" para a Fábrica das Artes-CCB com Ana Catarina Santos; bem como o texto e co-criação do primeiro espectáculo do outro, "as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos", peça com a qual foi autor seleccionado pelo comité português do Eurodram em 2020. Co-fundador de outro.

https://www.facebook.com/silviograterol
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