a história da minha vida — Rui Chafes
Esses anos em Itália, onde ainda haveria de voltar mais tarde, mudaram por completo a minha visão daquilo que sempre amei acima de tudo: a possibilidade de pôr no mundo uma escultura válida. O mundo já tem suficientes objectos inúteis e sem razão para existirem.
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Foram dias inesquecíveis em que a honra e o privilégio de trabalhar com aquele que eu considerava o maior Mestre-Escultor de toda a Alemanha me encheram da maior alegria que se pode ter: saber que se está a tomar parte, mesmo que ínfima, na criação de um momento de eternidade, de um momento em que a superfície da pedra ou da madeira ficará para sempre ferida pela luminosa violência da perfeição. (…) Com esse grande Mestre aprendi a lidar com os meus limites, com os limites da matéria, e a transformar esses limites numa marca da passagem do sopro que transforma o peso da matéria na leveza do espírito. Não há magia aqui, apenas o trabalho, a sabedoria e a experiência. Só a certeza e a crença de que, apesar de os objectos não existirem, de não ser possível acreditar na sua existência, de apenas serem uma possibilidade e não uma certeza definitiva, eles são a única maneira, que temos ao nosso alcance, de mostrar um pensamento no espaço. Não conhecemos outro modo, estamos condenados ao objecto, à sua construção. Por isso, e essa foi a enorme lição que aprendi com Tilman Riemenschneider, temos de ser absolutamente precisos e exactos na sua formulação espacial e na sua realização, para que a ideia que nos habita possa ser transmitida claramente, com o máximo de rigor. Temos de fazer como Robert Bresson diz: retirar tudo o que está a mais, descarnar bem os cabos para que a corrente eléctrica passe.
Depois dessa longa estadia em França, senti de novo falta da ofuscante e excessiva luz do sul, a luz que transforma tudo o que é real numa hipérbole da realidade: o exagero de realidade, aqui, parece afinal ser exactamente a sublimação desse real. Mas não é, é apenas o desvio que exige de nós um muito maior esforço para ultrapassar a evidência da realidade. O que se passa debaixo da crueza da luz do sul é uma forma de benevolência mascarada de impaciência: aceitamos as imperfeições do real com a mesma voracidade com que devoramos (ou desejamos devorar) as suas perfeições. É nesse implacável balanço entre peso e leveza, entre agrura e doçura, que os povos do sul sempre construíram, no meio do maior caos, a grandeza arcaica do seu destino. E isso não é coisa acessível à compreensão dos povos do norte, a menos que façam um grande esforço para entenderem a beleza das enormes diferenças que existem entre estas duas naturezas.
A simplicidade suave e a delicadeza daquela representação tão naturalista de um corpo absolutamente abandonado ainda hoje me comove. A sua pequena dimensão acentua a sua vulnerabilidade, a sua modéstia e o seu imenso desamparo; esta imagem permanece até hoje no meu coração, como um dos momentos em que compreendi como a simplicidade é sempre o melhor veículo para uma imagem poderosa e comovente.
Trabalhei na sua oficina, por volta de 1622 e 1623, na dificílima realização da escultura Apolo e Dafne. Foram dias do maior espanto e emoção e, até hoje, tenho a impressão de que esse tempo não existiu, que estive retirado do mundo, que tudo não passou de um sonho ou de uma visão, tão grande era a irrealidade e a improbabilidade daquele projecto. (...) Eu próprio não pensava que tal coisa fosse possível, parecia-me (como ainda hoje me parece) um milagre total. Era preciso ter uma coragem, uma loucura, uma audácia, uma ambição íntima avassaladora para conseguir realizar uma escultura assim. (...) Como é possível representar assim os músculos e as veias a latejar que se escondem por baixo dessa suave seda branca? Como é possível aprisionar assim a vida, para sempre, num silencioso manto imaculado? É uma imagem muito difícil de aguentar, é uma emoção demasiado grande; chama-se Paixão. Um amigo meu, um arquitecto que também trabalhava connosco, dizia-me sempre: «Bernini é um prodígio técnico mas é, também, um prodígio humano tão grande e total que só é possível por ele ter feito um pacto com o diabo! Só uma pessoa que tenha feito um pacto com o diabo é capaz daquilo. Não é deste mundo! Qualquer escultor chora ao ver esta escultura.»
Depois de terminada essa obra fiquei, obviamente, arrasado. A assombrosa energia de Bernini e a força criativa que emanava deixavam-nos a nós, seus assistentes, exaustos, exauridos. A minha vida no sul tornou-se demasiado excessiva, avassaladora e vi-me numa situação de esgotamento total, pondo em causa tudo o que até então tinha feito, ou tentado realizar. Mas precisava de continuar a viver, precisava de sobreviver. Não me restou, senão, admitir que não tinha nascido a sul, nem era feito para viver no sul, nem aguentar a sua tremenda energia ao mesmo tempo criativa e destrutiva: o sul é onde se exerce a arte de aceitar o caos como princípio criativo, se para tanto houver força, energia e saúde… Fugindo do terrível futuro que parecia aguardar-me, dirigi-me de novo à minha tranquila e amada Alemanha, ansiando pelo silêncio íntimo que nos espera nas brumas das suas florestas. A Alemanha sempre foi o local da alma, o local onde o nevoeiro, a falta de luz e a pele branca dos seus habitantes nos prometem a existência de um mundo interior, não apenas de um mundo virado para fora, como no sul.
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Só por volta de 1795 senti que, finalmente, estava a encontrar de novo o caminho que tinha perdido. Esses eram os anos da «revolução romântica» e todo um grupo de filósofos, pensadores, poetas e artistas apresentava progressivamente ao Mundo uma visão do Homem enquanto parte de um destino idealizado, em comunhão com um Universo não exclusivamente divino, mas sobretudo enquanto milagre de uma razão divinizada, de um qualquer milagre que pusesse o Homem, finalmente, no seu lugar de «sonhador do Mundo». Esse novo olhar apresentava-nos, de novo, o Mundo como um todo indivisível, como os Antigos queriam, em que tudo se relacionava com tudo, tudo fazia parte de tudo, tudo revelava o significado de tudo, a mais ínfima parcela era um reflexo da mais incomensurável totalidade. Essa imagem de uma comunhão universal da razão com o sonho, que já se tinha perdido há muito, interessou-me de tal maneira que me aproximei, dentro das minhas limitações de formação e educação, desse grupo de novos pensadores. Entre eles havia um jovem engenheiro de minas, muito entusiasmado e sensível, que parecia ser uma aparição de outro mundo. Chamava-se Georg Philipp Friedrich von Hardenberg mas escolheu o nome Novalis para renascer para o Mundo. A sua juventude não o impedia de ser dono de uma visão absolutamente sábia de todo o conflito que existe entre o interior do nosso corpo e o paraíso, da nossa condição de sonho entre o céu e a terra, durante um efémero mas delicioso momento. Ele descreveu da forma mais sábia uma Humanidade que ainda dorme um sono profundo nas margens de um sombrio rio de ouro, rodeado das mais altas e escuras montanhas. Essa Humanidade adormecida, entre lençóis de leite e mel, exige de nós que falemos baixo para não a despertarmos cedo de mais…
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Aproveito tudo o que aprendi com eles, tudo o que me ensinaram, mesmo sem o querer (e sem o saber), como é comum acontecer em todas as aprendizagens e também em todas as escolas e universidades, não é verdade? Tento fazer, finalmente, o meu caminho. Não estou certo de o estar a conseguir ou de vir a consegui-lo algum dia. Depois de tantos anos a trabalhar com grandes Mestres, estou em situação de, pelo menos, ter esperança de conseguir fazer alguma coisa minha, de conseguir criar um dia alguma escultura válida. O tempo o dirá, ainda só agora estou a começar.
No entanto, não estou angustiado. Sei que estamos todos entre o céu e a terra. E, seja como for, «estamos sós com tudo aquilo que amamos», como escreveu Novalis.
Lisboa, 6 Abril 2011
Palestra integrada no ciclo 100 Lições (100 anos 100 lições) comemorativo do centenário da
Universidade de Lisboa
Referência:
CHAFES, Rui, Entre o Céu e a Terra, Lisboa: Documenta, 2014:16-34
Imagens digitalizadas a partir das fotografias do livro.