o perfume das buganvílias — Rui Chafes

3.
Aprender a aceitar os limites da linguagem, aprender a alargar os limites da ideia. Ser sempre capaz de mais. A Beleza como dever, a coragem como único caminho para o futuro. Suave medo escuro.

 

5.
A cabeça estala por dentro, cansada das visões do Inferno. O Inferno é a perda de cor, de movimento, a perda de vida. Quando perdemos a vontade de regressar ao amplo espaço onde conhecemos a tranquilidade dos sonhos por realizar, é porque já não queremos fugir para o único lugar onde a vida alguma vez fez sentido. O Inferno não é a solidão mas, sim, a barreira que nos isola dos outros. O silêncio estático e apático que nos interroga através das imensas cortinas de água que toldam os nossos olhos; um sorriso que não é dirigido a ninguém. Passamos da escuridão à luz e da luz à escuridão. De cada vez, ficamos apavorados, com medo de abandonar o mundo que já conhecemos, de acabar, de chegar ao fim. Mas tudo é apenas uma passagem para outro universo, para um novo estado, um novo mundo, como nos explicou a longínqua voz de Lhasa de Sela. A beleza é impossível sem as marcas da morte, da separação, da consciência da morte que dá sentido à vida. O moribundo morre abandonado, deitado na dureza de uma pedra gelada, o seu grito não lhe pertence, está ao lado dele e prolonga-se sem fim. Estar tão só que não é possível imaginar o que é não estar só. Sozinho neste vazio, os lábios secos. Uma luz que se apaga, uma luz que se acende. A cada momento a esperança de que esse não seja o último. Qual é o nome deste fechar de olhos, ardendo em febre? Cada olhar vem pesado, sobrecarregado de memórias, de todas as memórias de todos os dias felizes. Uma vela que se apaga, lentamente, com a silenciosa tranquilidade dos momentos irreversíveis. Últimas palavras. O último minuto, aquele que Jean-Luc Godard filmou de forma raivosa, revoltada e incompleta, assombrado pelo pesadelo da cristalina perfeição do horror; ainda falta muito para esse último minuto chegar ao fim.

 

6.
Envelhecer é endurecer. Quando erguemos paredes de rigidez à volta da nossa vida, do nosso pensamento, estamos a envelhecer. Envelhecer é tornar-se rígido, duro e seco, como uma árvore que morre. «Se quiseres viver, tens de permanecer macio e flexível como um recém-nascido», disse-nos Arseni Tarkowsky pela voz das imagens do seu filho Andrej. Temos de, permanentemente, aceitar e acolher a instabilidade que altera os nossos hábitos para não ficarmos empedernidos, secos, fechados. Temos de aceitar, definitivamente, que o pensamento é sempre provisório, temporário. Só a permanente capacidade de mudança e de espanto para com o mundo nos poderá fazer viver (e não, apenas, existir). «Ser sábio é muito melhor do que ser inflexível», escreveu o sábio poeta greto Teógnis.

 

7.
De madrugada, depois da escuridão que tudo iluminou (mesmo o que nunca pensámos chegar a ver), toma-nos o medo de regressar ao conforto, ao aborrecimento, ao vazio assustador. A noite tem de ser prolongada para o dia não nos devorar a alma: «A noite dissolve os corpos, o dia dissolve a alma.» Gosto muito de longos dias nocturnos.

 

9.
A arte será sempre a fricção entre o mundo interior e o mundo exterior. A capacidade de transformar esse conflito numa forma possível é o trabalho dos artistas e dos poetas. Mas esse trabalho tem de ser feito segundo os valores mais antigos e eternos: «bravura, nobreza e entrega». Que ninguém se iluda, os covardes não têm acesso à Beleza.

 

16.
Estamos a viver nos escombros dos últimos dias, mas ainda não sabemos que direcção tomar. Cada vez mais as pessoas estão a sofrer com o vazio desta época materialista que parece estar a chegar, finalmente, ao seu fim. Mas que cultura, que civilização nos resta do velho mundo? Que últimos sentimentos ainda de um mundo que tendia para a perfeição de um Palácio? Existe uma tristeza, uma melancolia e a nostalgia de um mundo perdido (um mundo ainda humano) no lamento de Hans-Jürgen Syberberg. Ele fala-nos da perda da paisagem, da morte das florestas, dos lugares da infância, da decadência de uma civilização: a sua vacuidade sem desígnio, o consumismo desenfreado e absurdo, a massificação da cultura (regulando tudo por baixo, pela quantidade e não pela qualidade), a comunicação absolutamente falsa, cínica, manipuladora e comercializada. Essa perda faz-me pensar que, mais do que com os últimos sentimentos, lidamos com últimas pessoas, já muito raras. Provavelmente, a tristeza de que acusam as minhas obras prende-se com essa permanente perda, esse naufrágio. São imagens tristes e violentas porque são imagens de um mundo desaparecido. Próteses melancólicas de um mundo em extinção. Será necessária uma ruptura radical com esta era materialista, em que o individualismo é o motor da máquina social, e com o grotesco vazio do consumismo em que nos agitamos perdidamente e que é, não podemos ignorar, uma nova forma totalitária, alienante, repressiva e degradante da natureza humana: a sua permissividade é absolutamente falsa, não passa da máscara da pior repressão. Provavelmente nunca terá havido tantos escravos e escravatura como hoje… Como iremos ultrapassar esta Humanidade em que a barbárie dos corpos destroçados, mutilados e decepados convive indiferentemente com a euforia colorida do comércio? Acredito no poder imoral da arte, o meu único Deus. Acredito no seu poder catártico e purificador, no poder da sua consagração estética, na sua capacidade para nos dar asas que nos permitam «voar sobre o mar ilimitado e planar livremente sobre toda a terra». Acredito no seu poder para convocar a elevação e afirmar o que o homem tem de melhor: a esperança, a beleza, o bem; e é apenas isto que se pode opor à incredulidade, ao cinismo e ao vazio interior do mundo moderno. Acredito que a arte purifique o homem perante a catástrofe, ela é o movimento instintivo do corpo da humanidade para não vergar nem sucumbir sob o peso dessa matéria que impede a nossa elevação. A arte sempre foi a arma do homem contra a matéria que ameaça submergir o seu espírito e terá de o ser agora, mais do que nunca, nesta sociedade sem alegria, desesperadamente materialista. O progresso material não traz aos homens a felicidade: «os bens supérfluos tornam a vida supérflua», disse-nos Pasolini. A via espiritual é um testemunho da dignidade do homem e a esperança do homem que sofre a sua falta de dignidade. A arte exprime a necessidade de harmonia do homem mas também a sua necessidade de fazer perguntas e desconstruir para construir. É essencial continuar a transportar a chama, a preservá-la, a salvá-la cuidadosamente, a passá-la a alguém que há-de vir, a mantê-la acesa. As pessoas esquecem o passado, a responsabilidade de transportar a chama. «A única força de contestação do presente é o passado», disse-nos Pasolini que também era um puro homem do passado.

 

17.
Sou contra a dessacralização das coisas e das pessoas. Pelo contrário, acredito que o milagre da vida continua a ser sagrado. O milagre é a explicação inocente do mistério real que habita o homem, do poder que nele se dissimula. Não se pode morrer inculto, profano. Se não procurarmos saber por que viemos a este mundo, qual o sentido superior da nossa existência na Terra, o que nos resta é esta sociedade desencantada, ignorante e materialista. Pier Paolo Pasolini insistia que a dimensão do sagrado é essencial para a sobrevivência do ser humano. Sem o sentido do sagrado, o homem morre e a sua cultura desaparece. A necessidade do sentido do sagrado é a esperança contra a destruição e a erosão que esta sociedade de consumo nos inflige. O homem dignifica aquilo a que chamamos vida quando tem consciência de participar numa dimensão superior que o transcende. Tal como os Antigos acreditavam, deve haver um significado único e superior por detrás de cada erva, de cada nuvem que passa, de cada criança que nasce: não pode ser só e apenas biologia. Os Antigos viam Deus por detrás de cada erva, cada pedra, cada nuvem, cada criança que nascia. Tudo era apenas visão e voz, outra voz: a Natureza falava. O vento que passava nas folhas das árvores, a espuma do mar, o silêncio, o aroma… tudo era rasto da Sua presença. E existiam rituais que introduziam o mito na realidade e o tornavam parte da vivência diária. A arte era o espelho dessa íntima relação, era o produto do seu encantamento, era a testemunha e o motor dessa magia. «Um homem é um deus mortal, um deus é um homem imortal», disse Heraclito. Como se costuma explicar às crianças, os deuses fizeram os homens e os homens fizeram os deuses.

 

19.
O artista exprime o instinto espiritual da humanidade, traduz a tensão do homem em direcção ao eterno ou a uma qualquer forma de transcendência. A arte transporta em si uma nostalgia do ideal e exprime sempre a sua procura. A música de Bach ou de Vivaldi ecoará para sempre nas falésias de mármore que nos aprisionam e será sempre a nossa única evasão possível. O artista, no seu movimento para o Ideal, perturba a estabilidade de uma sociedade. A sociedade aspira à estabilidade, o artista aspira ao infinito. É essa a responsabilidade do artista e o sacrifício espiritual que lhe é exigido: com a sua consciência especial e a sua rigorosa demanda da momentânea verdade absoluta, ele vê as coisas antes dos outros e oferece-as ao Mundo mesmo se, por vezes, possam parecer apenas feridas abertas e vulneráveis. A arte coloca questões e dúvidas, instaura perturbações. Ela é a consciência da memória e da estrutura emocional de um espaço.

 

21.
Existe uma alma em tudo o que é bem feito. O que é mal feito é rombo, baço, triste. Tem de haver uma dignidade dos materiais assim como há uma dignidade das acções. Penso também em Jacques Tati quando me lembro de que «Deus está nos detalhes». A ética de trabalho obriga a que um artista não possa ser indulgente consigo próprio, pois não ser absolutamente exigente consigo é não respeitar os outros. O auto-contentamento é o que mata um artista. É essencial reservar sempre cepticismo, dúvida, resistência. A própria obra só poderá ser boa se resistir ao seu autor. O rigor e a ordem na perfeição do trabalho representam uma ética que não conhece a menor desistência. A confluência da Verdade e da Beleza implica que acreditemos que o que é belo é bom e o que é bom é verdadeiro. Não podemos desistir da procura do Belo e do Verdadeiro, é esse o caminho para o nosso renascimento. A arte é um trabalho que não quer servir o provisório. Entre o processo e a acção de construção da obra e a realização do seu acabamento final, joga-se um dos maiores dilemas do Modernismo. Assumir a experimentação, o inacabado, ou passar à etapa utópica do acabamento, transformou-se num conflito íntimo do colectivo artístico sem solução fácil. Mas, se hoje a Beleza é impotente e toda a nossa nostalgia da perfeição conhece a tragédia do fragmento e do inacabado, ficamos condenados a uma obra de arte impossível de terminar. Talvez a beleza só possa ser pensada, talvez só aí a sua perfeição se manifeste totalmente. Tudo não passa de várias tentativas, possibilidades, não resultados definitivos. Os objectos não existem, são impossíveis: breves marcas de uma passagem, relíquias de cujo culto recusamos ficar reféns. Não acredito em objectos, são apenas possibilidades, não são definitivos. Mas as suas sombras são as únicas testemunhas: por trás de cada sombra existe um objecto. Alberto Giacometti, no seu pequeno estúdio, não conseguia parar de recomeçar, de tentar, de falhar de novo e de recomeçar de novo: «É impossível deixar algo acabado, é impossível realizar um retrato, é impossível reproduzir o que se vê. Para ser capaz de fazê-lo, teria de morrer.» A arte é sempre uma decepção, não pode prometer nada. Mas a sua secreta ambição é desmesurada: parar o tempo.

 

25.
A cor é memória, não pode ser utilizada de forma emotiva ou emocional. O negro baço é a cor do luto por não podermos ser melhores, por não merecermos ser melhores do que somos. O negro baço, neutro, vazio absorve a luz (em vez de a reflectir). Como Ad Reinhardt aprendeu com Hokusai, existem diversos tipos de negro: negro velho, negro novo, negro luminoso, negro baço, negro à luz do sol, negro na sombra… Todas as pinturas negras procuram a intemporalidade estática da forma e todas procuram absorver-nos no insondável mistério das sombras que adivinhamos querer envolver-nos, fechar-nos os olhos. Por vezes é uma experiência religiosa de esvaziamento e recomeço.

 

26.
Existe uma «perfídia do objecto»: ele observa, com uma alegria maligna, os nossos vãos esforços para o subjugar. Temos de arrancar o objecto ao seu contexto natural, temos de o libertar dos laços que o unem aos outros objectos para o tornar absoluto. Só poderá existir uma aura em torno dos objectos se, como queria Nietzsche, reconduzirmos o pensamento à vida para a aumentarmos até a tornar num absoluto. Não há razão nenhuma para não nos sentirmos também observados pelos objectos.

 

30.
Há artistas que abrem as janelas para ouvir o mundo e assim poder trabalhar. Outros fecham as janelas para não ouvir os gritos, os grunhidos e os uivos do mundo, para poder trabalhar (mas como reconhecer o silêncio se não se conhecer o ruído?). No fundo, eles acreditam que é possível defender e proteger o sagrado espaço da arte, o espaço onde os grandes mestres do passado revivem na centelha de cada olhar. Para T.S. Eliot, a arte não devia ser sentimental nem romântica mas, sim, «clássica, racional, superior, aristocrática, reaccionária». Para ele, quanto mais completo é o artista, mais perfeitamente separados estão o homem que sofre e o espírito activo que cria. Separar a vida da arte, o homem do artista: não será esta a revolução necessária? Não nos terá já Fernando Pessoa falado disto?

 

33.
É compreensível que a maioria das pessoas prefira o fogo-de-artifício e o espectáculo ao silêncio e ao vazio. Nietzsche afastou-se de Wagner no momento em que este começou a ceder à tentação do espectáculo e a empreender uma linguagem apenas de efeitos. Caminhamos para uma civilização do espectáculo em que o sensacionalismo, a frivolidade, a superficialidade e o entretenimento são a expressão de uma indiferença passiva que aceita tudo como sendo cultura até chegarmos ao ponto de já não saber o que é a cultura. Temos de aceitar o reinado do vazio estéril? É muito difícil dizer não, recusar a facilidade e a sedução, escolher o caminho que, a todos os níveis, será o mais difícil: o caminho da austeridade e da pobreza de meios operativos. O «grande público» está ofuscado pelo espectáculo e pelo fogo-de-artifício fácil, está embrutecido e manipulado pelas campanhas demagógicas que o querem impedir e tornar incapaz de aceder a valores que o possam fazer questionar aquilo que lhe é dado como certo. Está habilmente manipulado e condicionado pela esmagadora cultura de massas, só tem acesso a produtos de consumo em série. É difícil, nestas condições, ter interesse ou conseguir chegar a uma arte mais exigente. A sua identidade arcaica e genuína foi substituída pelos modelos de consumo completamente distantes da sua realidade primordial. Esta é uma questão da mais básica economia de mercado, num tempo em que os principais estímulos são a brutalidade, a idiotia e a artificialidade. Oscar Wilde avisou-nos de que «a popularidade é a coroa de louros que o mundo coloca sobre a má arte. Tudo o que é popular está equivocado». A má arte serve para consolar as pessoas com a falsa promessa e a ilusão de estarem, finalmente, a «compreender» o que os artistas querem transmitir, sem perceberem que se trata de uma manobra perversa que visa impedi-las de realmente percorrerem um caminho mais elevado. Aquilo a que poderemos chamar «a tortura do terror estético vigente» despedaçou a nossa memória em destroços tão pequenos que a ninguém mais podem servir, como diz Gerhard Merz. Dessa maneira, se substituiu a tranquilidade intemporal pelo kitsch, o poder criativo e construtivo por falsas promessas de conforto e alegria. A arte mais rigorosa e radical nunca poderá ser um sucesso de massas, será sempre um fenómeno para uma minoria (para não dizer uma elite). A arte torna-se, nestes tempos, um duro exercício de resistência onde o artista permanece na sombra e, através do seu trabalho, faz dela o seu dia mais luminoso, caminhando no fio de uma afiada lâmina, com alguns outros discretos companheiros dessa solidão. Mas, como diz Pedro Costa, «temos de saber dizer não. E temos de saber que um filme é uma construção, mas uma destruição também pode ser uma construção».

 

34.
Vivemos numa época sem estética. Não temos falta de imagens, bem pelo contrário, sofremos a excessiva e invasora proliferação de imagens. O problema é a falta de conhecimento sério e de imagens credíveis, cuja ética de construção seja o seu valor mais intrínseco. A quantidade insana de imagens sem qualquer tipo de pensamento estético, que nos invade, deixa-nos absolutamente intoxicados por uma «estética sedutora» cujo padrão é a televisão, a publicidade, o poster, o videoclip: somos assaltados pela vulgaridade absoluta, pelos clichés mais banais, pelo vazio mais estéril a partir do qual nada se pode criar. Os artistas que pensam que podem criticar essa proliferação e invasão de imagens vazias, produzindo mais imagens vazias, estão profundamente equivocados: limitam-se a participar nessa multiplicação do banal e a ser acriticamente consumidos pelas massas mais desinformadas, como toda a omnipresente indústria visual. Imagem e Estética não são a mesma coisa, tal como poderemos facilmente observar no youTube… Toda a história da arte pode ser vista como uma sequência de imagens obedecendo a uma selecção, a uma valorização, a um pensamento estético que preside à sua construção. É impossível viver só com imagens vazias, imagens que são e serão sempre banais e indiferentes, não tendo capacidade para resistir para além do momentâneo choque que provocam. Imagens mortas que se apagam sozinhas. Resta-me acreditar que a desaceleração, a retracção, a contracção, a fuga ao efeito fácil, espectacular e banal serão a única forma de marcar e assumir a diferença de natureza entre as imagens rigorosas e as imagens frívolas e irresponsáveis. É preciso resistir, não facilitar, valorizar, seleccionar, construir, dificultar, seguir a extrema e exigente dureza das imagens de Robert Bresson. Estamos anestesiados, sem forças para reagir. Não acredito nesta proliferação gratuita e leviana de imagens vazias, sem estética e, provavelmente, sem ética.

 

36.
Só o trabalho interessa, o atelier, o núcleo duro da vida de um artista, o centro do seu mundo. Todo o resto não importa: para se ter uma coisa, tem que se abdicar das outras. O difícil não é começar bem, o difícil é manter, resistir, aguentar e acabar bem. Resistir, apresentar trabalho, manter sempre o nível de exigência, nunca descer, nunca fazer compromissos. Palavras de Richard Serra, o pragmático e certeiro operário do pensamento no espaço: «É preciso ter sempre atenção ao que fazemos, ao nosso trabalho, e exercer permanentemente a exactidão. Não podemos dar às pessoas o que elas querem. Não sabemos o que andamos a fazer, cada trabalho é uma resposta à sua própria pergunta. Trabalhar, trabalhar muito, trabalhar sempre. Criar condições para trabalhar, para avançar, para evoluir. Não importam as reacções nem as adversidades, só o trabalho. Só se pode trabalhar quando já se começou a trabalhar.»

 

39.
A arte nunca é pública, é sempre privada e transmitida apenas a alguns, aos que são capazes de a receber. Mesmo num espaço público, a arte só se liga às emoções secretas de cada indivíduo, a chama será sempre transmitida só a alguns, os que são capazes de ver (e não apenas de olhar). Nesse sentido, a arte é sempre para poucos. A arte é, pela sua natureza, aristocrática: ela manifesta um ideal destinado, no futuro, a pertencer a toda a Humanidade mas que, no início, só pertence a um pequeno número e ao artista que foi capaz de fazer coincidir a consciência vulgar com a consciência ideal.

 

43.
Acredito na poesia, no seu poder único. Como Novalis, acredito que tudo é poesia, que a mais pequena flor representa um pensamento, a intuição pura de um instante, uma explosão gelada de verdade. O sentido poético (tal como o entendia Pier Paolo Pasolini) é o que nos permite agir sobre o mundo mediante uma deslocação, por vezes mínima, de sentido ou de ponto de vista. O sentido poético é o que desloca o espectador para um ponto onde uma nova construção da realidade pode acontecer. O fim da poesia é estabelecer um desvio, é quebrar e desconstruir todos os códigos de comunicação existentes, alterar o mundo como os homens o conhecem, abrir fissuras no espaço com a sua presença. A poesia não é outra linguagem, é sobretudo, um outro olhar. Robert Bresson disse que não é necessário nem possível procurar a poesia, ela penetra pelas juntas, o que e preciso é saber recebê-la. Para isso, é necessário juntar o que está separado, desequilibrar para reequilibrar, pois não existe arte sem transformação.

 

44.
Neste mundo da banalização e consumo das imagens, quem acredita ainda no poder redentor da arte e da palavra? Não importa em que lugar a arte é apresentada: se houver uma pessoa, uma só pessoa, que seja tocada, que se emocione, uma única, a arte será salva.

 

Lisboa, 14 Janeiro 2012

Conferência na Fundação Carmona e Costa, por ocasião da exposição Desde o Finito, comissariada por
João Miguel Fernandes Jorge

 

Referência:
CHAFES, Rui, Entre o Céu e a Terra, Lisboa: Documenta, 2014, 39-62

outro

outro é uma estrutura artística multidisciplinar dirigida por João Leão e Sílvio Vieira.

Com sede em Lisboa, surgiu como clube de leitura e reflexão em Janeiro de 2017, constituindo-se associação cultural no final de 2018. Ao longo desses dois anos assinou textos e materiais originais, mais tarde indexados num corpo autoral que estruturou as primeiras criações: este website e o espectáculo as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos.

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