dissonância cognitiva II — ferida
A dissonância é movimento, motiva, impele à acção. A sede move-nos em direcção à água como a dissonância em direcção à consonância. Se a dissonância está associada à mobilidade, à procura de estratégias para resolver uma contradição, a consonância aproxima-se da imobilidade. Há poucas excepções a esta regra, uma delas o medo. O medo da dissonância pela memória de experiências traumáticas pode paralisar-nos.
A dissonância é criadora. Se pudermos definir "criação" como a libertação da tensão acumulada entre dois pontos em conflito, a dissonância será uma força criadora. O conflito é motivo de mudança, e essa mudança opera-se física, psicológica e socialmente. No indivíduo, o conjunto de contradições internas e o intermitente esforço de organização desse caos, constituem a matéria-prima necessária à formação da personalidade e à criação da realidade individual.
Tremor interno
A teoria da dissonância de Festinger prevê não só a colisão entre duas cognições*, como também a existência de uma pressão exercida pela realidade (interna ou externa) sobre o indivíduo para reduzir esse choque. A pressão será tanto maior quanto maior a magnitude e intensidade da dissonância.
Magnitude — a distância que separa as cognições individuais da realidade. A dissonância será tanto maior quanto maior for esta distância. Se a distância for zero existe consonância.
Intensidade — a importância subjectiva atribuída pelo indivíduo ao par de elementos da relação. A dissonância que rompe da esfera familiar ou amorosa é forte, por exemplo.
O aumento da magnitude e intensidade é proporcional ao aumento da pressão para a redução da dissonância. O conflito inicial pode resolver-se ou escalar para um nível de tensão cada vez maior. Exemplo parvo: não empresto roupa ao meu irmão porque ele pode estragá-la, e por isso não consigo pedir-lhe o carro a não ser que lhe comece a emprestar roupa para não me sentir mal quando lhe for pedir o carro. A redução da dissonância passa sempre por um esquema de concessões, internas ou externas.
Quanto mais forte a dissonância, maior esforço cognitivo exige do indivíduo e mais desconforto lhe provoca, e maior será a energia dedicada à sua redução. Essa energia é efeito da dissonância e simultaneamente causa da sua redução, numa relação paradoxal causa-efeito: a causa (dissonância) produz a condição da sua própria extinção – o efeito (redução da dissonância).
*conjuntos de conhecimento sobre o self e o que rodeia o self ("sou íntegro", "amigo do meu amigo", "costuma fazer bom tempo no Verão")
Farpa
Na formação de uma opinião ou tomada de decisão, há sempre uma medida de dissonância entre a opinião ou comportamento tomado e as cognições do indivíduo que apontam para outras direcções. Nem sempre conseguimos racionalizar e expiar esta inconsistência, e temos de viver com ela. Viver com uma farpa alojada no corpo é desconfortável. Assim, é seguro afirmar que:
A dissonância é psicologicamente desconfortável. Procura-se reduzi-la e atingir a consonância.
No confronto com o dissonante, evita-se situações ou informações novas que o possam alimentar.
Veja-se como nestas premissas se pode substituir a palavra "dissonância" por fome, sede, frustração ou, no fundo, desequilíbrio. Esta substituição aproxima a dissonância da sobrevivência, e eliminar a dissonância torna-se estratégia evolutiva. A um nível extremo, uma dissonância forte e exposta publicamente resulta na ostracização ou expulsão de um indivíduo da comunidade, o que de uma perspectiva evolutiva significa morte. A maioria de nós não sobreviveria sozinho. A dissonância e consequente procura de a reduzir é um exercício homólogo ao da satisfação da fome.
Curativo
Quando encontramos uma inconsistência interna procuramos eliminá-la de imediato. É fascinante - e até cómico - observar como podemos ser tão criativos a inventar estratégias para o fazer.
A teoria da dissonância é contra-intuitiva, ou seja, vai contra a expectável relação causa-efeito. Espera-se que as nossas atitudes sejam a causa das nossas acções, e não o contrário. No entanto, é mais frequente do que se imagina as nossas acções serem causa e agente transformador das nossas atitudes. Mentimos a nós próprios para nos convencermos de algo que justifica o nosso comportamento, alterando sem remorso as nossas crenças, atitudes e opiniões — a suposta residência da “verdade individual” — só para que não nos possam apontar o dedo ou chamar hipócritas. A verdade não deveria ser tão fácil de abandonar, e o lugar da crença torna-se volátil e prescindível. Os nossos alicerces, se os tivermos, devem ser feitos de outra coisa.
É certo que "hipócrita" é uma palavra forte e feia, por isso, e para não ofender ninguém, falemos antes em ajustes. Podemos encontrar estes "ajustes" nos candidatos políticos e na informação contraditória que debitam conforme a audiência, no júri que se recusa a acreditar em provas que ilibam um réu no tribunal, nas convenientes distorções ou supressões de memória que todos experimentamos, ou nos argumentos espantosos que usamos para justificar a nossa posição numa guerra à escala familiar ou global.
Sabendo que o fumador é sistematicamente apontado como caso de estudo em psicologia, tomemos mais uma vez o fumador vulgaris como paciente de dissonância crónica.
Procedimentos para a redução da dissonância teimosa:
Alterar a atitude/crença/opinião, formando cognições como:
fumar é tão bom que vale a pena
os perigos não são tão grandes como se julga ou não me atingem
nem tudo é mau – os incontáveis benefícios do tabaco
muitas outras coisas matam e, surpresa, ainda estou vivo
se deixar de fumar posso ganhar peso e isso é pior ainda
a minha avó está viva aos 90 e já fuma há 70
Atinge-se a consonância entre fumar e as ideias positivas que se criam em relação a fumar.
Esta última tentativa nem sempre resulta, e o caso dos fumadores é um bom exemplo. Perante a possibilidade dolorosa de ter de deixar de fumar, o fumador prefere justificar o vício com base em informações que ele próprio pode achar duvidosas ou pouco significativas, acabando por falhar na tentativa de reconciliação interna, sistematicamente (porque não desiste de tentar). No entanto, prefere o desconforto ligeiro e intermitente da dissonância à prevista angústia de uma vida sem tabaco.
Este método torna-se difícil e perigoso quando envolve a alteração de crenças basilares. Afinal de contas, absorvemos, processamos e organizamos o ambiente à nossa volta a partir das nossas crenças e atitudes, e alterá-las significa mudar também a forma como vemos e nos relacionamos mundo, e isso pode ter consequências graves.
Alterar o comportamento
deixar de fumar
As sensações de ansiedade ou culpa estão ligadas à dissonância, e não são raras as vezes em que abandonamos um vício por culpa. Ainda assim, somos exímios a evitar sensações desconfortáveis, o que nos leva a procurar outras formas:
Alterar a percepção do comportamento: o método dos espertos
Alterar o ambiente. Pressupõe que o indivíduo tem controlo sobre o espaço que o rodeia. Um bom exemplo disto é a formação de grupos por identificação: uma pessoa com predisposições hostis escolhe rodear-se de pessoas violentas, assim legitimando práticas de outra forma consideradas delinquentes ou marginais. O apoio de outras pessoas que pensam como nós é uma forma de eliminar a dissonância - atinge-se a consonância através da validação social - e é o primeiro passo no sentido da radicalização e fundamentalismo.
Adicionar novas cognições. Reduzir a dissonância acrescentando novos elementos que se coadunam com a nossa vontade (“arranjar desculpas”). O fumador pode defender-se relativizando o vício e retirando-lhe importância — a probabilidade de morrer pelo tabaco é menor do que ao volante de um automóvel, por exemplo. O processo de angariação de novos elementos é muito selectivo e cuidadoso, não vá o indivíduo deparar-se com:
Novos elementos dissonantes. Se surgir um novo elemento dissonante, a tendência será para o criticar, menosprezar e esquecer rapidamente. O fumador prefere não olhar para as fotografias nos maços de tabaco.
Referências
FESTINGER, Leon, Theory of Cognitive Dissonance, Califórnia: Stanford University Press, 1962
Uma ideia semelhante à do paradoxo gerador - embora não tão ampla - já tinha sido sugerida por Yuval Noah Harari, em Sapiens, sob a designação de contradição geradora, ou seja, a importância das contradições na construção da cultura.