dissonância cognitiva I — quando a profecia falha

Sempre me pareceu enigmática e desde sempre me espantou a capacidade de o homem alimentar na sua alma um ideal sublime ao lado de uma grandíssima ignomínia, e ambas as coisas com uma sinceridade absoluta.
— Fiódor Dostoiévski
 
Leon Festinger, 1919-1989

Leon Festinger, 1919-1989

 

Leon Festinger procurava testar a teoria da dissonância cognitiva quando ouviu falar de um culto que previa o fim do mundo a 21 de Dezembro de 1955. Os membros da ceita podiam estar descansados, seriam resgatados por extraterrestres e levados até ao planeta fictício Clarion. A profecia tinha sido revelada pela Senhora Keech (nome também fictício), chefe máxima da ceita num processo de – pasme-se – escrita automática.

O investimento era máximo, o compromisso era público, seria interessante observar como lidaria o Sr. X com o falhanço da profecia. Chega o dia do apocalipse e… nada. No seio do grupo levantam-se as primeiras preocupações, ninguém consegue explicar o que (não) acontecera. A Sra. Keech apressa-se a transmitir outra mensagem, desta vez dizendo que o mundo “só não acabou por causa das nossas orações”. Apaziguaram-se os corações. O comportamento do grupo mudou drasticamente. Os crentes foram à televisão e à rádio apresentar-se como os novos salvadores do mundo. E quem podia apontar-lhes o dedo e dizer que estavam errados?

 
Desisti de tudo, cortei todos os laços, queimei todas as pontes, virei as costas ao mundo. Não me posso dar ao luxo de duvidar. Tenho de acreditar.
— Sr. X, médico de profissão e membro do grupo
 
Code and Entropy, Ernesto Caivano, 2010

Code and Entropy, Ernesto Caivano, 2010

 

Lei da entropia

A tendência no sentido da entropia e do caos é acompanhada paradoxalmente por outra de igual força em direcção à ordem. Pense-se no ciclo da destruição de estrelas e formação de planetas. Também o inevitável caos interno coexiste com persistentes tentativas de reorganização, pulsões vãs em direcção a um consenso impossível de atingir.

Ainda assim, o indivíduo não desiste de procurar esse consenso. Se imaginarmos as opiniões e crenças como montanhas internamente consistentes, a inconsistência reside em dois vales distintos: o vale entre atitude (entenda-se aqui atitude como posicionamento interno em relação a algo e não como comportamento) e opinião, e o vale entre estas duas e o comportamento.

A inconsistência é como uma farpa cravada na pele, tão mais dolorosa quanto maior o contraste com a auto-imagem do indivíduo – geralmente viciada no sentido da rectidão e congruência.

Num estudo feito anualmente pela Universidade de Queensland, 90% dos estudantes avaliam as suas capacidades como acima da média ao comparar-se com outros estudantes – repito, 90%. Mais ainda, 25% considera fazer parte do 1% que está no topo, a nata sobredotada. Estes números, para além de impossíveis, dão vontade de rir. Se não estou em erro, acima da média só podem estar 50%, e em 1% só cabe 1%. Estranhamente (ou não), as pessoas que sofrem de depressão fazem uma avaliação mais exacta e menos inflacionada das suas capacidades. 

 
Knowledge without wisdom III, Paulo Zerbato, 2011

Knowledge without wisdom III, Paulo Zerbato, 2011

 

Cognições

Atribuímos os conceitos de dissonância e consonância às relações entre pares de elementos chamados cognições. As cognições são conjuntos de conhecimento sobre o self (o que o indivíduo quer, sente, faz) e sobre o que rodeia o self (outras pessoas, situações, o mundo em geral).

Cognições como crenças ou opiniões podem ser apelidadas de “conhecimentos” porque, assim como o conhecimento, só são sustentadas no seu pleno enquanto forem verdade. Quando deixam de o ser, são armazenadas como versões antigas de outras mais actualizadas – depois de descobrir que um pedaço de conhecimento está errado ou desactualizado não o descartamos, pelo prazer que temos em detectá-lo nos outros e assim esclarecer a audiência.

O conhecimento passado torna-se anexo do “verdadeiro” e está pronto a usar quando solicitado. As cognições actuais flutuam na superfície de um pântano de versões passadas que, apesar de sabermos não serem verdade, ainda assim formam parte do conhecimento disponível.

Relações possíveis entre cognições

Irrelevância – os elementos não têm pontos de contacto. A irrelevância é apenas aparente, elementos desconhecidos podem ligar-se conforme a situação.

Relevância – fricção entre dois elementos que se tocam.

  1. Consonância. Os elementos x e y são consonantes quando x procede de y (voto no deputado do PS porque sou do PS)

  2. Dissonância. Os elementos x e y são dissonantes quando o contrário de x procede de y (voto no deputado do PSD e no entanto sou do PS). A dissonância pode proceder de:

    • falhas lógicas – acreditar que o homem pode ir à lua e não acreditar que pode construir um foguetão

    • códigos culturais – o mesmo gesto pode ser cordial ou depreciativo consoante a cultura

    • inclusão de uma opinião menor num posicionamento maior – sou vegetariano porque não gosto que maltratem os animais mas por favor ninguém me tire o queijo

    • experiência passada e incumprimento da expectativa – aquele “amigo” não me convidou para aquela festa

 

Jerry’s Map, Jerry Gretzinger, 1963-

Mapa de um mundo fictício de 5000 m2, constituído por 3200 mosaicos de 20×25 cm e construí­do ao longo de mais de 50 anos

 

A Grande Ditadora

As cognições são espelho e mapa da realidade, seja ela física, social ou psicológica, e devem sobrepor-se-lhe e representá-la o mais veridicamente possível. A realidade exerce uma pressão em direcção à formação de cognições — conhecimento — que correspondem a essa realidade.

A sobrevivência torna-se impossível se o conhecimento sobre a realidade estiver desajustado ou não corresponder nos elementos mais fundamentais. A consequência mais extrema deste desconhecimento é a morte. A alienação e desintegração sociais, por exemplo, têm origem nesta inadaptação do indivíduo ao mundo que o rodeia e são causa de patologias psicológicas graves.

 

Referências
FESTINGER, Leon, Theory of Cognitive Dissonance, Califórnia: Stanford University Press, 1962
FESTINGER, Leon, RIECKEN, Henry, SCHACHTER, Stanley, When Profecy Fails, Londres: Pinter & Martin
FESTINGER, Leon, 1962, Cognitive Dissonance, Scientific American, Outubro:93-106
Jerry’s Map: jerrysmap.com

Sílvio

Sílvio Vieira nasceu em Leiria em 1994. Estudou Sociologia no ISCTE-IUL e é licenciado em Teatro (Actores) pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2018). Complementou a sua formação académica com Miguel Seabra, Sofia de Portugal, Philipp Rost, Mike Bernardin, Monika Gossmann e Jan Pappelbaum (cenografia). Iniciou o seu percurso como actor no Teatro da Cornucópia, sob direcção de Luis Miguel Sintra, de onde destaca os espectáculos "Pílades", "Lisboa Famosa (Portuguesa e Milagrosa)" e "Hamlet". No Teatro Nacional D. Maria II trabalhou com Tiago Guedes, Álvaro Correia e Miguel Loureiro. Em teatro trabalhou ainda como actor em espectáculos de Ana Zamora, Ricardo Neves-Neves e Carlos J. Pessoa. Intérprete em performances de André e. Teodósio e Patrícia Moreira. Em cinema trabalhou, entre outros, com Jorge Cramez, João Leão e Pedro Cabeleira. Lecciona teatro a um grupo de pessoas com doenças de risco na associação Ser+ de prevenção e desafio ao VIH. Do seu trabalho autoral destacam-se a co-criação do primeiro espectáculo da companhia de teatro As Crianças Loucas, da qual faz parte desde 2017; o texto e co-criação de "Dentro3" para a Fábrica das Artes-CCB com Ana Catarina Santos; bem como o texto e co-criação do primeiro espectáculo do outro, "as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos", peça com a qual foi autor seleccionado pelo comité português do Eurodram em 2020. Co-fundador de outro.

https://www.facebook.com/silviograterol
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