dissonância cognitiva I — quando a profecia falha
Leon Festinger procurava testar a teoria da dissonância cognitiva quando ouviu falar de um culto que previa o fim do mundo a 21 de Dezembro de 1955. Os membros da ceita podiam estar descansados, seriam resgatados por extraterrestres e levados até ao planeta fictício Clarion. A profecia tinha sido revelada pela Senhora Keech (nome também fictício), chefe máxima da ceita num processo de – pasme-se – escrita automática.
O investimento era máximo, o compromisso era público, seria interessante observar como lidaria o Sr. X com o falhanço da profecia. Chega o dia do apocalipse e… nada. No seio do grupo levantam-se as primeiras preocupações, ninguém consegue explicar o que (não) acontecera. A Sra. Keech apressa-se a transmitir outra mensagem, desta vez dizendo que o mundo “só não acabou por causa das nossas orações”. Apaziguaram-se os corações. O comportamento do grupo mudou drasticamente. Os crentes foram à televisão e à rádio apresentar-se como os novos salvadores do mundo. E quem podia apontar-lhes o dedo e dizer que estavam errados?
Lei da entropia
A tendência no sentido da entropia e do caos é acompanhada paradoxalmente por outra de igual força em direcção à ordem. Pense-se no ciclo da destruição de estrelas e formação de planetas. Também o inevitável caos interno coexiste com persistentes tentativas de reorganização, pulsões vãs em direcção a um consenso impossível de atingir.
Ainda assim, o indivíduo não desiste de procurar esse consenso. Se imaginarmos as opiniões e crenças como montanhas internamente consistentes, a inconsistência reside em dois vales distintos: o vale entre atitude (entenda-se aqui atitude como posicionamento interno em relação a algo e não como comportamento) e opinião, e o vale entre estas duas e o comportamento.
A inconsistência é como uma farpa cravada na pele, tão mais dolorosa quanto maior o contraste com a auto-imagem do indivíduo – geralmente viciada no sentido da rectidão e congruência.
Num estudo feito anualmente pela Universidade de Queensland, 90% dos estudantes avaliam as suas capacidades como acima da média ao comparar-se com outros estudantes – repito, 90%. Mais ainda, 25% considera fazer parte do 1% que está no topo, a nata sobredotada. Estes números, para além de impossíveis, dão vontade de rir. Se não estou em erro, acima da média só podem estar 50%, e em 1% só cabe 1%. Estranhamente (ou não), as pessoas que sofrem de depressão fazem uma avaliação mais exacta e menos inflacionada das suas capacidades.
Cognições
Atribuímos os conceitos de dissonância e consonância às relações entre pares de elementos chamados cognições. As cognições são conjuntos de conhecimento sobre o self (o que o indivíduo quer, sente, faz) e sobre o que rodeia o self (outras pessoas, situações, o mundo em geral).
Cognições como crenças ou opiniões podem ser apelidadas de “conhecimentos” porque, assim como o conhecimento, só são sustentadas no seu pleno enquanto forem verdade. Quando deixam de o ser, são armazenadas como versões antigas de outras mais actualizadas – depois de descobrir que um pedaço de conhecimento está errado ou desactualizado não o descartamos, pelo prazer que temos em detectá-lo nos outros e assim esclarecer a audiência.
O conhecimento passado torna-se anexo do “verdadeiro” e está pronto a usar quando solicitado. As cognições actuais flutuam na superfície de um pântano de versões passadas que, apesar de sabermos não serem verdade, ainda assim formam parte do conhecimento disponível.
Relações possíveis entre cognições
Irrelevância – os elementos não têm pontos de contacto. A irrelevância é apenas aparente, elementos desconhecidos podem ligar-se conforme a situação.
Relevância – fricção entre dois elementos que se tocam.
Consonância. Os elementos x e y são consonantes quando x procede de y (voto no deputado do PS porque sou do PS)
Dissonância. Os elementos x e y são dissonantes quando o contrário de x procede de y (voto no deputado do PSD e no entanto sou do PS). A dissonância pode proceder de:
falhas lógicas – acreditar que o homem pode ir à lua e não acreditar que pode construir um foguetão
códigos culturais – o mesmo gesto pode ser cordial ou depreciativo consoante a cultura
inclusão de uma opinião menor num posicionamento maior – sou vegetariano porque não gosto que maltratem os animais mas por favor ninguém me tire o queijo
experiência passada e incumprimento da expectativa – aquele “amigo” não me convidou para aquela festa
Jerry’s Map, Jerry Gretzinger, 1963-
Mapa de um mundo fictício de 5000 m2, constituído por 3200 mosaicos de 20×25 cm e construído ao longo de mais de 50 anos
A Grande Ditadora
As cognições são espelho e mapa da realidade, seja ela física, social ou psicológica, e devem sobrepor-se-lhe e representá-la o mais veridicamente possível. A realidade exerce uma pressão em direcção à formação de cognições — conhecimento — que correspondem a essa realidade.
A sobrevivência torna-se impossível se o conhecimento sobre a realidade estiver desajustado ou não corresponder nos elementos mais fundamentais. A consequência mais extrema deste desconhecimento é a morte. A alienação e desintegração sociais, por exemplo, têm origem nesta inadaptação do indivíduo ao mundo que o rodeia e são causa de patologias psicológicas graves.
Referências
FESTINGER, Leon, Theory of Cognitive Dissonance, Califórnia: Stanford University Press, 1962
FESTINGER, Leon, RIECKEN, Henry, SCHACHTER, Stanley, When Profecy Fails, Londres: Pinter & Martin
FESTINGER, Leon, 1962, Cognitive Dissonance, Scientific American, Outubro:93-106
Jerry’s Map: jerrysmap.com