amor contratual em regime de exclusividade
O protagonista do livro de Goethe A Paixão do Jovem Werther comete suicídio após descobrir que o seu amor não é correspondido. Depois da publicação e devido à projecção que o livro teve, registaram-se vários suicídios por toda a Europa, estando alguns dos quais associados à obra. Foi possível estabelecer uma relação entre o livro e as mortes ocorridas devido à presença de elementos característicos no local: as roupas, a presença da obra ao lado do corpo, ou até mesmo o método adoptado. A partir daqui, o fenómeno que prevê o aumento do número de suicidas após um suicídio mediático foi apelidado pela Psicologia Social de “efeito Werther”.
O movimento romântico que se iniciou no século XIX – o Romantismo - expandiu-se e foi acolhido com uma receptividade esmagadora por toda a Europa. Artistas de todos os cantos do continente aderiram massivamente aos princípios caracterizadores desta expressão estética e artística, alicerçada no sentimento. Questões como a originalidade ou os direitos de autoria não existiam antes do romantismo ou não eram encarados com o grau de importância que ainda hoje se lhes atribui. Assim, o romantismo exalta a singularidade e a visão particular do agente/artista romântico que observa, exclusividade esta que se estende até aos dias de hoje.
Coincidindo ou não com o movimento artístico acima referido, ocorreram várias alterações sociais que se reflectiram em mudanças de mentalidade. Antes do despontar do movimento romântico, o “casamento por contrato” – movido por alianças económicas, religiosas, moralistas ou de interesses políticos – abrangia todas as classes sociais. Não obstante a sua origem multicausal, o acordo matrimonial - tal como outro tipo de contratos - foi uma forma que a sociedade encontrou para gerir as relações sociais, através de um melhor controlo dos impulsos individuais, evitando assim tensões e cisões no seio da comunidade. No entanto, a partir de meados do século XIX, este “casamento por contrato” foi substituído por um casamento regido por motivações afectivas.
Um pouco mais tarde, o cinema norte-americano dos anos 30 contribuiu (e contribui ainda hoje) significativamente – para a validação da ideia de que uma relação íntima entre homem-mulher está limitada à existência ou não de um impulso platónico que será o justificativo para todos os contactos posteriores, também eles organizados de acordo com uma sequência bem definida. Deste modo, o impulso motor para uma ligação deste género nunca poderá ser somente a atracção física ou o desejo sexual, sem nenhuma conexão ou integração dos mesmos na teia romântico-conceptual que tolhe as mentalidades actuais. Há que notar, também, a existência de um valor de exclusividade que existe e que advém não só de preceitos religiosos que durante muito tempo dominaram a mentalidade do homem ocidental, como também de valores característicos do romantismo. É importante salientar que a dimensão espiritual tão característica deste movimento foi, em parte, alimentada por uma ideia de espiritualidade que reflecte de certo modo uma herança judaico-cristã.
Depois da II Grande Guerra (1939-1945), mas principalmente durante a guerra entre o Vietname e os EUA (1955-1975), assistiu-se à falência progressiva de um conjunto considerável de valores e normas sociais que orientavam o comportamento do indivíduo, instalando-se uma anomia social.
A anomia social caracteriza-se — grosso modo — por uma anarquia (crise) de valores, na qual a inexistência de preceitos definidos e validados pela ordem política/religiosa/social vigente, atira o indivíduo para uma espécie de liberdade total. Assim, o Estado ou a Igreja deixam de ditar e de controlar princípios morais, não sendo a conduta individual orientada em torno de adjectivações inquestionáveis que definem algo como sendo “bom” ou “mau”. Paradoxalmente, esta liberdade revela-se uma condicionante bastante forte para o indivíduo, visto que o posicionamento da sociedade perante todos os aspectos da vida individual e colectiva se encontra indefinido.
Assim, a inexistência de preceitos concretos e bem definidos que orientariam o comportamento do indivíduo (tal como referido anteriormente, durante vários séculos foi a Igreja e o Estado que os definiu) conduziu, gradualmente, à criação de dois extremos. Por um lado, a prevalência do amor romântico, por outro lado, tornaram-se relativamente aceitáveis as “one night stands” e os “fuck friends”. Com o passar do tempo, o homem ocidental viu-se envolvido numa batalha interior entre o amor romântico e o sexo pelo sexo.
Porém, a insistência, projecção e receptividade por parte do mundo ocidental às tendências apresentadas pelo cinema norte-americano, contribuiu para a reafirmação e o triunfo dos ideais românticos e, assim, para a supremacia do amor romântico como o impulso motor de uma relação íntima entre um homem e uma mulher – ainda nos dias de hoje. Este amor ocidental entrega a relação afectiva entre um homem e uma mulher a uma sequência de acções que – sendo parte integrante do nosso imaginário – aceitamos como sendo lógica e "natural". Há duas pessoas que se conhecem, tornam-se amigas, descobrem interesses comuns que as aproximam, começam a encontrar-se mais vezes (na maioria dos casos em lugares convencionados para o efeito neste primeiro estágio do relacionamento: cafés, idas ao cinema, jantares, etc.). Progressivamente a relação avança porque, dados todos estes passos já se criou uma dinâmica que une estes dois seres humanos, nomeadamente, a paixão. Esta palavra legitima o avanço da relação para os passos que se seguem e que todos sabemos de cor e salteado.
Apesar de, hoje em dia, ainda nos parecer bastante mais legítima e humana a concessão da primazia ao sentimento em detrimento do monetarismo interesseiro e, até mesmo, do sexo pelo sexo, abre-se aqui porta a uma nova reflexão: não será este “amor” um outro tipo de contrato? Um género contratual que actua a um nível muito mais profundo e forte ao passar despercebido pelo sistema legislativo e incidir directamente sobre a mentalidade de cada um (entenda-se por mentalidade: princípios de vida, opções individuais, etc.).
Há alguns antropólogos e filósofos que apresentam uma reflexão interessante com o objectivo de justificar a fabricação e disseminação deste conceito de amor ocidental. Estes especialistas ressaltam o facto de que — desde o início dos tempos — uma tensão sexual reprimida e generalizada está na origem de conflitos bélicos e sociais. O amor ocidental passou a ser utilizado como uma ferramenta que tem a função de apaziguar e dirigir as relações interpessoais, de modo a impedir ou travar impulsos violentos que são a consequência directa da tensão sexual acumulada. Assim, toda a conceptualização deste amor ocidental foi algo que permitiu gerir as relações humanas, organizar a sociedade e atenuar a explosão de determinados impulsos biológicos e naturais, potencialmente autodestrutivos. Deste modo é possível salvaguardar uma determinada ordem e paz social. Neste contexto, e estabelecendo uma ligação com os argumentos acima presentes, os contratos ajudam a aliviar as tensões sociais ao funcionarem como um pacto oficial de confiança mútua.
Nesta sequência, é relevante voltar à história d’ A Paixão do Jovem Werther. Werther suicida-se porque o amor que sente por Charlotte se vê travado por um noivado que esta já selou. Este contrato entra em conflito com outro que o próprio Werther estabeleceu consigo próprio, nomeadamente, amá-la exclusivamente a ela. Não sendo possível a concretização deste pacto, na medida em que Charlotte já está comprometida, o protagonista da obra considera que a sua vida não vale a pena, não tem rumo, é algo indefinida. O destino deste jovem é exemplificativo das forças invisíveis que passaram a governar a mente e o comportamento do homem ocidental, reduzindo-se (tal como fizeram em tempos instituições como a Igreja e o Estado) a complexidade do Ser Humano, as relações que entre si estabelece e a sua liberdade, a um contrato, no qual o papel do homem e da mulher são bem definidos e selados por um protocolo de exclusividade.
Não será este amor romântico, fabricado pela cultura ocidental, um novo cinto de castidade, embora nos seja apresentado como algo libertador, natural e apaziguante? E a liberdade individual propriamente dita, onde está? A fluidez de nos deixarmos levar por um impulso sentido, traduzindo-o em acções espontâneas e autênticas sem sermos limitados de um modo tão peremptório por esta teia romântico-conceptual?
Será este exercício possível?
Referência
GOETHE, Johann Wolfgang, A Paixão do Jovem Werther, Lisboa: Bertrand Editora, 2014