vilões
Há um indivíduo que é uma ameaça global porque tem um exército de robôs. Sempre que aparecem os robôs, não acontece nada, eles ficam só parados a olhar com uma expressão muito simpática à espera de instruções, mas ao fundo vê-se sempre este indivíduo, encapuçado, misterioso, vestido de época. Numa dessas vezes, o investigador-herói — que não sou eu não sei porquê — persegue-o até ao elevador. O indivíduo esconde-se atrás dos robôs e a porta fecha-se antes de o investigador o agarrar ou perceber quem é. Em virtude da quantidade de robôs a entupir a entrada, e contra todas as previsões de uma sequência de acção, a porta do elevador volta a abrir-se. Ainda assim, e como estes imprevistos não acontecem nos filmes, o investigador já não estava lá para apanhar o vilão porque já alguém tinha gritado CORTA. A porta fecha-se outra vez e o elevador começa a descer muito lentamente. Aparecem duas raparigas a espreitar por cima — o elevador era de caixa-aberta vá-se lá saber porquê — e observam o indivíduo, deitado por cima das cabecinhas dos robôs, numa posição muito relaxada. Uma delas ainda lhe pergunta se é o Jon Snow, a outra diz que “não, estúpida, é o teu irmão”. Este pedaço de informação, aparentemente relevante a uma trama normal, provou-se inconsequente no desenrolar dos acontecimentos seguintes. Aliás, a história destes robôs que, ao fim de contas, não fizeram mal a ninguém, parecia ter ficado por aqui.
Entretanto surge outra ameaça global, e desta vez sou eu o herói. Há um comício à saída de um hotel qualquer, com cadeiras, figuras sentadas, um projector e um ecrã gigante. O orador é o novo vilão, chama-se Samuel. Usa uns óculos rectangulares muito sóbrios, é careca e de meia-idade. É um actor conhecido mas não sei de onde. Ah, já sei, é o vilão do X-men, que deu as unhas ao Wolverine no filme em que a outra é engolida pela barragem. Enfim, tento ouvir umas palavras baças pelo vidro e vejo umas silhuetas pelos buraquinhos dos estores do hall de entrada. O Samuel vai explicando o plano maquiavélico à audiência, ajudado por uns slides com imagens de galáxias e planetas a explodir. Quando ele acaba de falar, os outros aplaudem e vão-se embora, satisfeitos. Entretanto, sabendo eu que o Samuel vai acabar por subir para os quartos, subo para os quartos. Tenho de o matar. Preciso de entrar no quarto dele para ter tempo de fazer os preparativos para o homicídio correr bem. Não sei o andar nem o número do quarto, mas confio na minha intuição. Saio no terceiro e encontro a equipa de limpeza. Não é a equipa de limpeza mais vulgar, é um rapaz e uma rapariga, da minha idade, ou seja, à volta dos 22 anos. O rapaz está vestido com um polo azul-escuro e a rapariga não me lembro, não fala durante todo o tempo e está sempre lá atrás. Não os vi a limpar nada, digo que são das limpezas porque estavam ao pé do carrinho das limpezas e tinham acesso a todos os quartos. Pergunto-lhes se podiam abrir a porta do quarto do Samuel, que ele tinha dito para eu subir e ficar à vontade. O rapaz pergunta quem eu sou e eu digo que costumo fazer visitas ao Samuel quando está em tournée. Ele deve ter percebido outra coisa e sorriu, malandro, mas ainda assim pega no telemóvel e começa a telefonar a alguém. Como não posso correr riscos começo a fugir.
Fujo até à minha casa de infância. Fico lá não sei quanto tempo de luzes apagadas — uma tortura para mim, que tenho medo do escuro e a casa sempre foi um ninho de aranhas (também tenho medo de aranhas). Entretanto chega um jipe, eu abro a porta de entrada — na certeza de que ninguém me vai ver por estar tudo escuro — e vejo quem chega. O jipe passa mas volta atrás devagarinho, como se as pessoas dentro do jipe tivessem reparado na porta aberta. Queriam matar-me. Estava certo disso e o meu corpo também. Apressadamente fujo pelas traseiras e dou a volta à casa. Quem quer que fosse ia esperar-me em todos os sítios menos na saída lateral da rampa.
Estava enganado. Chego à rampa e deparo-me com uma imagem ao mesmo tempo sublime e aterradora. Quatro mulheres, em planos e profundidades diferentes, olham para mim, paradas numa pose três/quartos. Só reparo na cara da vilã-chefe, era uma conhecida actriz portuguesa de voz rouca, magra, cabelo preto liso e com uns olhos enormes que já não faz nada há algum tempo. Não sei o nome dela nem quero saber, tenho medo de repreensões. As outras eram sobretudo corpos lá atrás. Um vento leve agita-lhes os cabelos, mas não muito, parece que o tempo, até aí convulso, parou. Na cena estão também alguns cães, de raças e portes diferentes, espalhados pela rampa como mortos. Não respiram nem ladram, parecem estátuas com pêlo, e reparo que um deles está do avesso, com o pescoço enterrado no cimento e as patas traseiras no ar; outro, de uma côr cinzento-prata muito bonita, está deitado sobre as costas, contorcido numa posição demoníaca. Começo a fugir na direcção contrária, e ouço a vilã-chefe a atiçar os cães contra mim. Ainda apanho um comentário dela no ar, a dizer que devia ter trazido tipos de letra com mais caracteres e símbolos, que assim despida se sentia presa e limitada nos movimentos. Penso agora se não seriam os robôs do início, mas com pele; ou então se aqui as pessoas precisavam dos tipos de letra para falar e mexer-se, e eram obrigadas a descarregar actualizações e tipos de letra diferentes para fazer coisas diferentes como subir escadas de corda. E era isso que era preciso ali, eu tinha fugido por uma escada de corda. Olho para trás e já só tenho um cão atrás de mim, os outros tinham ficado a fazer amor com as ervas do jardim. Ao cão dou uma patada e nunca mais o vejo.
Subo o resto das escadas e chego ao telhado da casa. Entretanto, surge um casal, também da minha idade. A rapariga parece que veio da escola, tem uma daquelas túnicas de algodão muito betas, é gordinha e tem óculos de armação grossa. Tem puberdades na cara. O rapaz, namorado dela, tem um polo azul-escuro embora não seja o mesmo de há pouco. Estes dois queriam matar-me, tinham o disfarce perfeito mas uma grande falta de jeito. Começam a rodear-me como chacais e a falar entre si por comentários como “cuidado querido, ele é perigoso”. Nisto, dou um coice à miúda, ela ainda rebola um pouco nas telhas e cai lá para baixo. O rapaz enche-se de cólera e lágrimas nos olhos, eu dou-lhe uma patada e ele desfaz-se em pó. Agora que penso nisto fico triste e com pena.
Olho para baixo para ver se já é seguro descer e vejo a vilã-chefe a subir as escadinhas de corda e madeira, raivosa. Vai proferindo umas palavras em voz alta e apaixonada, naquele tom de discurso final de vilão. Apanho algumas coisas como “o meu período”, “calças vermelhas” e “Abril”. Gostava mesmo de me lembrar de todo o texto, parecia ser importante, mas também não quero inventar. A imagem mais forte que tenho deste momento é o pau de madeira da escada de corda à frente das virilhas dela e enquadrado por umas ancas portentosas debaixo de calças vermelhas. O vermelho parecia ser relevante, é a cor dos talhos. A vilã-chefe, na lógica dos filmes, devia ser a mais difícil de matar, e esta já não ia lá com um coice. Fujo pelo outro lado do telhado e corro o mais que posso pela rua, ofegante. Pelo canto do olho reparo que ela vem atrás de mim a toda a velocidade na bicicleta de cestinho da minha mãe. Via-lhe as chispas de raiva nos olhos enquanto subia, esbaforida, a rua atrás de mim. Temia pela minha vida. Nisto aparece o meu vizinho Fernando, vê dois vultos a correr e aos gritos e escapa-se em direcção à porta de casa. Grito para ele perceber que sou eu, ele detém-se e deixa-me entrar.
Estou seguro, por agora, e acordo.