sobre o estrangeiro e a cidade
“Nunca nos sentimos tão solitários e isolados como no bulício das grandes cidades. Porque aqui, como noutros lugares, não é de modo algum necessário que a liberdade dos indivíduos se reflicta na sua vida emocional como experiência agradável.”
Georg Simmel
A noção de mobilidade aparece, no pensamento de Simmel, sob duas formas distintas. A primeira associa-se à figura do estrangeiro. Num texto de 1908, Simmel desenvolve algumas ideias que permitem uma conceptualização conjunta do espaço e da cultura:
Se a errância é a libertação relativa a todos os pontos dados no espaço e se opõe conceptualmente ao facto de se estar fixado num ponto, a forma sociológica do estrangeiro apresenta-se como a unidade dessas duas características.
SIMMEL, 1990b:53
Mais à frente, no mesmo texto, a definição da figura do estrangeiro vai articular, espacial e culturalmente, a proximidade e a distância:
Assim, o estrangeiro de que falamos aqui não é essa personagem que foi frequentemente descrita no passado, o viajante que chega um dia e volta a partir no dia seguinte; é, antes, a pessoa chegada hoje e que ficará amanhã, o viajante potencial, de alguma forma: embora não tenha prosseguido o seu caminho, não abandonou completamente a liberdade de ir e vir. Está ligado a um grupo espacialmente determinado, ou a um grupo cujos limites evocam limites espaciais, mas a sua posição no grupo é essencialmente determinada pelo facto de ele não fazer parte desse grupo desde o início, de ele lhe ter introduzido características que não lhe são próprias e que não podem sê-lo. A unidade da distância e da proximidade, presente em toda a humanidade, organiza-se aqui numa constelação cuja fórmula mais curta seria a seguinte: a distância no interior da relação significa que o próximo é longínquo, mas o próprio facto da alteridade significa que o longínquo está próximo. (Idem: 53-54) O estrangeiro, por definição, não tem raízes – entendendo-se este termo, não só no seu sentido material, mas também no seu sentido metafórico, como existência substancial enraizada em qualquer parte, se não é no espaço, ao menos num ponto do meio social. […] Reduzido ao comércio intermediário, e frequentemente à pura finança, como se esta fosse a sua forma sublimada, ele adquire a sua característica específica: a mobilidade. Se a mobilidade se introduz num grupo fechado, ela arrasta com ela essa síntese de proximidade e de distância que constitui a posição formal do estrangeiro.
IDEM:55
A forma particular de o estrangeiro articular a proximidade e a distância é organizadora de uma cultura singular, que, segundo Simmel, é indissociável do meio onde se desenvolve: a cidade, pensada a partir das características que a distinguem dos outros meios. Num texto denominado «A Metrópole e a Vida do Espírito», de 1903, a multidão, outra figura do pensamento de Simmel, surge associada ao indivíduo (que por vezes será de facto um estrangeiro, mas que na cidade assume sempre algumas das características daquele), ao possível sofrimento, mas, sobretudo, à noção de liberdade. De alguma forma, podemos dizer que encontramos nesse texto a formulação de uma concepção ética da cidade.
A importância de que se reveste, para a independência do indivíduo, a atitude de reserva e de indiferença, bem como as condições mentais da vida dos grandes aglomerados, só é realmente apreciada nas densas multidões das metrópoles, em que o limitado espaço de movimento e a proximidade física dos indivíduos justificam de imediato o seu distanciamento mental. É apenas por oposição a esta liberdade que, naturalmente, em determinadas condições, nunca nos sentimos tão solitários e isolados como no bulício das grandes cidades. Porque aqui, como noutros lugares, não é de modo algum necessário que a liberdade dos indivíduos se reflicta na sua vida emocional como experiência agradável.
SIMMEL, 1997:38
Nos textos de Walter Benjamim sobre a poesia de Baudelaire (Benjamim, 1979) surge a figura do passeante, uma personagem que na sua relação de proximidade/distância com o meio envolvente se aproxima do estrangeiro de Simmel, e que, tal como este, é pensado em conjunto com a figura da multidão: o passeante ama a solidão, mas quer vivê-la no meio de desconhecidos. Em 1982, data da publicação da sua obra póstuma e inacabada Paris, capitale du XIX siècle, foi possível reencontrar, em formulações mais complexas e sofisticadas, o tema da relação entre a cidade, os seus habitantes e a cultura que lhe é específica.
Num contexto que pretende pensar a relação entre a produção artística e a cultura do início do século, Simmel defende que a escultura de Rodin criou uma nova forma, um estilo que significou uma outra possibilidade de expressão. Ao inscrever a mobilidade do corpo no centro da sua representação Rodin deu, segundo Simmel, forma plástica a uma consciência cultural emergente:
Nessa tendência para a mobilidade encontra-se a relação mais profunda da arte moderna em geral com o realismo; a mobilidade crescente da vida real não se manifesta só na mobilidade idêntica da arte, mas o estilo da vida e o da arte provêm os dois da mesma raiz profunda.
SIMMEL, 1990a:126
Benjamim concedeu (…) à arquitectura um papel muito especial: o de «testemunha da mitologia latente de uma determinada época». Elegeu as galerias (ruas comerciais cobertas por estruturas de vidro e ferro) como a arquitectura mais importante do século XIX e, por isso, considerou-as reveladoras do espírito da época. No seguimento do trabalho de Simmel, procurou a especificidade do espaço da cidade e tentou associá-la a um estilo de vida. Encontrou-a no carácter transitório, efémero e movente das práticas sociais que percorre as galerias (e aqui reaparece a personagem do passeante), no papel sedutor e mágico da mercadoria exposta (tornada mais atraente pela recente iluminação a gás), na moda como afirmação moderna do mito do eterno retorno.
Paris, capitale du XIX siècle deixa ainda propostas de trabalho estimulantes, relativas às formas possíveis de abordar – do ponto de vista da rescrita – o espaço da cidade. O texto, na sua forma fragmentada, acaba por corresponder ao olhar do passeante e, por isso, àquilo que será uma escrita possível para dar conta do olhar dos habitantes das cidades contemporâneas. Para lá da questão da fragmentação do texto, podemos isolar uma outra – a da escala de abordagem – que se reveste de implicações metodológicas importantes: a mobilidade do sujeito narrador conduz a uma multiplicação das escalas de abordagem, saltando da escala global para escalas mais reduzidas e acabando na valorização epistemológica do pormenor:
Descobrir na análise do pequeno momento singular o cristal do acontecimento total.
BENJAMIN, 1989: 12
Numa tentativa de pensar a cidade como um meio percorrido por uma forma de vida específica, Robert Park e Louis Wirth vão buscar a Simmel a figura do estrangeiro. A partir da ideia de mobilidade, tentam definir um tipo de sociabilidade próprio da cidade e, mais do que isso, uma mentalidade. No dizer de Yves Grafmeyer e de Isaac Joseph (1984),
A naturalização da cidade-meio apoia-se primeiro numa figura que lhe serve de suporte e de objecto de análise. O «estrangeiro» de Simmel, a figura do judeu ou do comerciante-nómada, ou ainda a do vagabundo, servem duplamente nos textos de Park: introduzem um factor de desestabilização num meio que é suposto não reagir à sua presença, como o faria uma comunidade tradicional; sublinham características de mobilidade, de heterogeneidade, de valorização da excentricidade, que opõem globalmente – estruturalmente – o rural ao urbano.
IDEM: 10
O acto físico de se movimentar no espaço, relaciona-se, do ponto de vista sociológico, com a diminuição dos constrangimentos sociais, e, como havia proposto Simmel, com a experiência da liberdade dos indivíduos. Veja-se um extracto de um texto de Park, publicado em 1926, em que a cidade é percepcionada como um fenómeno natural:
É porque a comunicação tem um papel fundamental na existência de uma sociedade que os factores geográficos, e, num sentido mais geral, todos os factores que limitam ou facilitam a comunicação, fazem parte, a nosso ver, da sua estrutura e da sua organização. É assim que os conceitos de posição, de distância e de mobilidade ganharam uma nova importância. Do ponto de vista sociológico, a mobilidade só tem importância na medida em que permite novos contactos sociais, e a distância física só tem significado para as relações na medida em que a interpretamos como distância social.
O organismo social tem isso de particular e de desconcertante, é composto de unidades capazes de locomoção. O facto de qualquer indivíduo ser susceptível de se deslocar no espaço assegura-lhe uma experiência particular que lhe é própria, e essa experiência – adquirida durante as suas aventuras no espaço – concede-lhe, na medida em que é única, um ponto de vista independente: torna-se o ponto de partida de uma acção individual. Para um indivíduo, é o facto de ter uma experiência única e de ter disso consciência, é a sua disposição para pensar e agir em função dessa experiência, que o constitui, finalmente, como pessoa.
PARK, 1990:209
A preocupação em encontrar critérios de definição da cidade levou Wirth a fazer aquilo a que Yves Grafmeyer e Isaac Joseph chamaram uma «definição minimal de cidade». Os critérios utilizados são três e inspiram-se nas propostas da Morfologia Social: dimensão, densidade e heterogeneidade. A partir da sua combinação, Wirth concebeu um modelo que, apesar de discutível, porque não aplicável à generalidade das cidades e dos seus habitantes, se revela ainda, enquanto modelo de referência, produtivo. Os seus traços essenciais são os seguintes:
Carácter anónimo, superficial e efémero das relações sociais, que tendem a tornar-se essencialmente segmentares, utilitárias e racionais; multiplicação dos papéis e das pertenças em que o indivíduo não investe senão uma parte de si próprio; substituição dos laços comunitários primitivos pela associação de base racional, pelos mecanismos de delegação e de representação; realização do indivíduo cujas singularidades são valorizadas, mas também nivelamento e massificação das opiniões e dos comportamentos.
GRAFMEYER e JOSEPH, 1990:32
Referência
SILVANO, Filomena, Antropologia do Espaço, Lisboa: Documenta, 2017: 28-39