o paradoxo da criação

O problema é paradoxal.

A pergunta é paradoxal.

O problema nasce e cria ele próprio o contexto da sua extinção. A pergunta não contém a resposta, antes desencadeia o movimento e força em direcção à resposta. Se a resposta é o fim da pergunta, a melhor pergunta é aquela capaz de mobilizare permanecer, ainda assim, indecifrável.

A humanidade move-se para resolver problemas aparentemente impossíveis, como a fome ou a desigualdade. A tensão pulsante nestes problemas, entre dois pontos contraditórios ou entre uma pergunta e a procura da resposta é geradora e criadora — da relação dialéctica entre tese e antítese nasce uma síntese que pode ou não resolver o conflito. Seguindo esta lógica, os grandes problemas do mundo são a mais poderosa força organizativa e mobilizadora da massa — fontes inesgotáveis de criação mesmo após sucessivas tentativas de resolução.

Um problema quase impossível é mais "produtivo" que um problema menor, e este aparente absurdo confere valor ao esforço e elimina a suspeita — para quê tentar, então? Esta pequena dúvida poderia paralisar-nos, não fosse a história humana a história da invenção humana — a invenção que continua a ser a tentativa de resolver problemas ainda insolúveis — como a morte, por exemplo. O maior problema da medicina é, e sempre foi, a certeza da morte. Hoje, quer queiramos quer não, a morte afigura-se cada vez menos certa e é na vida eterna que reside o futuro da humanidade, naquele que é o grande desígnio da ciência — o Projecto de Gilgamesh. O final da Epopeia de Gilgamesh centra-se na revolta do herói perante a morte do amigo Enkidu, quando Gilgamesh decide desafiar os deuses e procurar a imortalidade.

Seguindo esta linha, uma proposta para a definição de criação poderia ser: a libertação da tensão acumulada entre dois pontos em conflito tendo em vista a dissipação desse conflito. Ainda que se provem infrutíferos todos os esforços, esta colisão acaba por ser destrutiva e construtiva, num equilíbrio que começa por existir na Natureza e se estende a todos os domínios da vida humana, inclusive aos mais artificiais — os que apenas existem na nossa imaginação colectiva.

 
Tábua V da Epopeia de Gilgamesh, 2000-1500 a.C

Tábua V da Epopeia de Gilgamesh, 2000-1500 a.C

Sílvio

Sílvio Vieira nasceu em Leiria em 1994. Estudou Sociologia no ISCTE-IUL e é licenciado em Teatro (Actores) pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2018). Complementou a sua formação académica com Miguel Seabra, Sofia de Portugal, Philipp Rost, Mike Bernardin, Monika Gossmann e Jan Pappelbaum (cenografia). Iniciou o seu percurso como actor no Teatro da Cornucópia, sob direcção de Luis Miguel Sintra, de onde destaca os espectáculos "Pílades", "Lisboa Famosa (Portuguesa e Milagrosa)" e "Hamlet". No Teatro Nacional D. Maria II trabalhou com Tiago Guedes, Álvaro Correia e Miguel Loureiro. Em teatro trabalhou ainda como actor em espectáculos de Ana Zamora, Ricardo Neves-Neves e Carlos J. Pessoa. Intérprete em performances de André e. Teodósio e Patrícia Moreira. Em cinema trabalhou, entre outros, com Jorge Cramez, João Leão e Pedro Cabeleira. Lecciona teatro a um grupo de pessoas com doenças de risco na associação Ser+ de prevenção e desafio ao VIH. Do seu trabalho autoral destacam-se a co-criação do primeiro espectáculo da companhia de teatro As Crianças Loucas, da qual faz parte desde 2017; o texto e co-criação de "Dentro3" para a Fábrica das Artes-CCB com Ana Catarina Santos; bem como o texto e co-criação do primeiro espectáculo do outro, "as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos", peça com a qual foi autor seleccionado pelo comité português do Eurodram em 2020. Co-fundador de outro.

https://www.facebook.com/silviograterol
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