porque coisificamos?

Embora a sua origem possa ser encontrada na Idade Média, a distinção entre trabalho manual e intelectual é moderna e tem duas causas bastante diferentes, ambas, porém, igualmente características do clima geral da era moderna. Uma vez que, nas condições modernas, toda a ocupação deveria demonstrar a sua «utilidade» para a sociedade em geral, e como a utilidade das ocupações intelectuais se tornara mais que duvidosa dada a moderna glorificação do trabalho, era natural que também os intelectuais desejassem ser considerados membros da população trabalhadora. Ao mesmo tempo, porém, e em contradição apenas aparente com este facto, a necessidade e a estima da sociedade em relação a certas realizações «intelectuais» aumentaram de modo sem precedentes na nossa história, com a excepção dos séculos de declínio do Império Romano.
— Hannah Arendt
 

Olá.

Estava aqui a pensar no porquê de escrever disciplinadamente o meu pensamento, sendo que o meu pensamento é uma grande bagunça – não segue ordens, nem regras, nem vírgulas, nem pontos de exclamação - e sendo também que ninguém o ouve, ou vê ou sente. É invisível. Não se toca, nem se agarra. A menos que se escreva. A menos que se fale. A menos que se represente. Digo meu pensamento porque é o único que conheço do lado de dentro, mas suponho ser assim para todos: uma grande confusão de ideias, frases e imagens. Como coisificar o que vai no nosso “espírito vivo”?

Hoje trabalhar inclui tudo o que se faz (e o que se é) — YOU ARE WHAT YOU DO — quer sejamos canalizadorx, escritorx, pedreirx, filósofx, cabeleireirx, etc. Venha o produto da cabeça ou do corpo, ele é trabalho e raramente se ouve a palavra labor. No entanto, o que hoje é tomado pela mesma coisa, antes da era moderna possuía significados diferentes.

"(…) todas as línguas europeias, antigas e modernas, possuem duas palavras de etimologia diferente para designar o que para nós, hoje, é a mesma actividade, e conservam-se ambas apesar de serem repetidamente usadas como sinónimas."

Porque é que não se fundiram as duas? Assim, teríamos que trabalorar para sobreviver, com as «mãos» ou com a «cabeça». Na origem das palavras, LABOR tem conotação de dor e atribulação, lida agrícola executada por servos; e TRABALHO é o produto do artífice, conseguido não necessariamente com esforço, mas sim com talento e habilidade.

O labor das nossas mãos é facilmente detectado pelos olhos e, essencialmente, pela utilidade. Acho que se merece dizer que por utilidade entende-se também dinheiro. O trabalho intelectual não possui utilidade nenhuma e, aqui, continuamos na eterna questão da razão pela qual existe a Filosofia, a Literatura ou a ARTE. Porque raio continuam os intelectuais e artistas desconsiderados da classe trabalhadora se o seu trabalho nos é necessário? Quem é mais «importante» (ou «útil»)?!

A matéria do trabalho dos intelectuais é: a palavra, o pensamento, o discurso. Ao “espírito vivo” eles pertencem e não às mãos que produzem. Se não escrevêssemos os pensamentos, se os discursos não fossem ouvidos e assistidos, estas 3 unidades da vida humana não existiriam. O trabalho manual, no sentido mais literal, concreto, e fácil para nós, existe porque são usadas as mãos, as pernas e os pulmões. O trabalho intelectual durante muito tempo não teve o mesmo protagonismo que o trabalho manual, pois no intelecto não existe artefacto físico. É por isso que coisificamos os pássaros do espírito vivo em livros, quadros, músicas, poemas, esculturas…

 
Imagem retirada do livro Works on Paper, Antonin Artaud, 1996 (edição)

Imagem retirada do livro Works on Paper, Antonin Artaud, 1996 (edição)

 

Referências
ARENDT, Hannah, "O labor do nosso corpo e o trabalho das nossas mãos", A Condição Humana, Lisboa: Relógio D'Água, 2001

Sofia

Sofia Fialho é licenciada em Teatro (Actores) pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016). Iniciou o seu percurso como actriz no grupo de teatro Os Gambuzinos. Trabalhou com Tiago Vieira em 2015 integrando os espectáculos DESTRUIÇÃO, Tudo o que tenho para oferecer: feridas e É como uma noite em pleno dia aos pedaços. Estreou-se profissionalmente com os Artistas Unidos em Os Acontecimentos de David Greig, encenado por António Simão. Em 2016 cruzou-se com Faustin Linyekula em We Went There And All We Found Was Chaos e integrou a performance de Anabela Mota Ribeiro e André e. Teodósio Estar em Casa no Teatro São Luiz. Em 2018 entrou no espectáculo Não Estava à Espera de Morrer de Tiago Mateus, e em 2020 em ALMA, encenação de Cristina Carvalhal. Enquanto cantora fez parte da banda Tracinho Ponto Tracinho e apresentou um concerto com Rui Rebelo no AO LARGO Estúdio. Co-fundadora do outro.

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