porque coisificamos?
Olá.
Estava aqui a pensar no porquê de escrever disciplinadamente o meu pensamento, sendo que o meu pensamento é uma grande bagunça – não segue ordens, nem regras, nem vírgulas, nem pontos de exclamação - e sendo também que ninguém o ouve, ou vê ou sente. É invisível. Não se toca, nem se agarra. A menos que se escreva. A menos que se fale. A menos que se represente. Digo meu pensamento porque é o único que conheço do lado de dentro, mas suponho ser assim para todos: uma grande confusão de ideias, frases e imagens. Como coisificar o que vai no nosso “espírito vivo”?
Hoje trabalhar inclui tudo o que se faz (e o que se é) — YOU ARE WHAT YOU DO — quer sejamos canalizadorx, escritorx, pedreirx, filósofx, cabeleireirx, etc. Venha o produto da cabeça ou do corpo, ele é trabalho e raramente se ouve a palavra labor. No entanto, o que hoje é tomado pela mesma coisa, antes da era moderna possuía significados diferentes.
"(…) todas as línguas europeias, antigas e modernas, possuem duas palavras de etimologia diferente para designar o que para nós, hoje, é a mesma actividade, e conservam-se ambas apesar de serem repetidamente usadas como sinónimas."
Porque é que não se fundiram as duas? Assim, teríamos que trabalorar para sobreviver, com as «mãos» ou com a «cabeça». Na origem das palavras, LABOR tem conotação de dor e atribulação, lida agrícola executada por servos; e TRABALHO é o produto do artífice, conseguido não necessariamente com esforço, mas sim com talento e habilidade.
O labor das nossas mãos é facilmente detectado pelos olhos e, essencialmente, pela utilidade. Acho que se merece dizer que por utilidade entende-se também dinheiro. O trabalho intelectual não possui utilidade nenhuma e, aqui, continuamos na eterna questão da razão pela qual existe a Filosofia, a Literatura ou a ARTE. Porque raio continuam os intelectuais e artistas desconsiderados da classe trabalhadora se o seu trabalho nos é necessário? Quem é mais «importante» (ou «útil»)?!
A matéria do trabalho dos intelectuais é: a palavra, o pensamento, o discurso. Ao “espírito vivo” eles pertencem e não às mãos que produzem. Se não escrevêssemos os pensamentos, se os discursos não fossem ouvidos e assistidos, estas 3 unidades da vida humana não existiriam. O trabalho manual, no sentido mais literal, concreto, e fácil para nós, existe porque são usadas as mãos, as pernas e os pulmões. O trabalho intelectual durante muito tempo não teve o mesmo protagonismo que o trabalho manual, pois no intelecto não existe artefacto físico. É por isso que coisificamos os pássaros do espírito vivo em livros, quadros, músicas, poemas, esculturas…
Referências
ARENDT, Hannah, "O labor do nosso corpo e o trabalho das nossas mãos", A Condição Humana, Lisboa: Relógio D'Água, 2001