uma fresca, clara e deliciosa perspectiva

Um dos meus momentos preferidos num dos meus filmes de animação preferidos — o Ratatouille — dá-se quando a personagem genialmente baptizada de Ego pede ao empregado de mesa uma dose de

perspectiva

uma fresca, clara e deliciosa perspectiva

Por medo que perdesse o encanto, e até porque é o único filme de animação que me faz chorar de cada vez que o vejo e gostava que assim continuasse por me lembrar tão eficazmente da minha humanidade, nunca fui averiguar o que significava isto de perspectiva em culinária. Mesmo agora enquanto escrevo e procuro a expressão exacta na internet desloco os olhos com muito cuidado para não tropeçar na explicação enfadonha. Sempre gostei muito daquela palavra — pers-pec-ti-va — soletrada por aquela figura escura e esguia, e na voz do Carlos Paulo, e ainda gosto, apesar de os últimos anos me terem trazido algumas leituras técnicas e um cepticismo menos infantil.

Pois bem, é desta palavra e desta expressão que quero fazer uso. Sem querer ser moralista mas sendo, acho que precisamos todos de uma dose deliciosa de frescas e claras perspectivas.

A cada porquê gostamos de fazer corresponder uma única resposta. Precisamos de uma direcção, e não gostamos de admitir que um problema ou fenómeno possa ser filho de várias mães.

 
Frame do filme Ratatouille, 2007

Frame do filme Ratatouille, 2007

 

No caso recente dos incêndios — do qual me sirvo apenas como exemplo — poucos se mostraram dispostos a assumir que o fenómeno pudesse ser multicausal. Povo, políticos e especialistas procuraram com todas as forças uma causa, uma origem, e se a culpa fosse de uma pessoa, ainda melhor, que a empatia também está ao serviço da cólera. Repare-se como foi enxovalhada a ministra entretanto desistente, que mais não foi senão a bochecha para quem-de-direito dar umas valentes lambadas (não obstante a evidente responsabilidade do cargo). Até os especialistas se esqueceram de manter os nervos frios e puxaram raivosamente a brasa ao seu pimento — uns culparam as alterações climáticas, outros o potencial explosivo do eucalipto aka-gasoline-tree, outros os terroristas, outros as máfias, outros os interesses económicos... Alguns mais sensatos ainda disseram que era tudo isto, mas a voz da razão em tempo de guerra é sempre mais baça, e a massa precisa que lhe digam para onde dirigir a fúria e esticar o chicote.

Preferimos a direcção de um só alvo à confusão de dois ou mais alvos igualmente importantes embora distantes e não relacionáveis. Ainda que possamos admitir, em momentos de clarividência, a existência de outras causas para o mesmo problema, sempre haverá uma que se eleva sobre todas as outras, e que é capaz de alimentar sozinha a raiva, o movimento, a paixão.

A “largueza de espírito” oferecida pela perspectiva é certamente abrangente, mas mais fria, e torna-se difícil assumir uma posição e ferver por ela. E nós do que gostamos é de ferver, de explodir, se bem que de forma cada vez mais contida — os nossos gritos agora escrevem-se por zeros e uns. Por outro lado, a perspectiva é uma consciência que se veste como camada crítica, é  ver as coisas de cima, de um sítio pouco implicado e quiçá demasiado distante para conseguir fazer alguma coisa de útil. Em última análise, não sei o que é melhor, se o fogo da violência ou o gelo da perspectiva.

...

Respiro, reflicto, e a verdade é que me parece tudo muito morno, anestesiado e apático, por saber-se tudo tão passageiro. A expiação e explicação do sentimento por palavras, no papel ou no computador, arrefece-nos.

Sílvio

Sílvio Vieira nasceu em Leiria em 1994. Estudou Sociologia no ISCTE-IUL e é licenciado em Teatro (Actores) pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2018). Complementou a sua formação académica com Miguel Seabra, Sofia de Portugal, Philipp Rost, Mike Bernardin, Monika Gossmann e Jan Pappelbaum (cenografia). Iniciou o seu percurso como actor no Teatro da Cornucópia, sob direcção de Luis Miguel Sintra, de onde destaca os espectáculos "Pílades", "Lisboa Famosa (Portuguesa e Milagrosa)" e "Hamlet". No Teatro Nacional D. Maria II trabalhou com Tiago Guedes, Álvaro Correia e Miguel Loureiro. Em teatro trabalhou ainda como actor em espectáculos de Ana Zamora, Ricardo Neves-Neves e Carlos J. Pessoa. Intérprete em performances de André e. Teodósio e Patrícia Moreira. Em cinema trabalhou, entre outros, com Jorge Cramez, João Leão e Pedro Cabeleira. Lecciona teatro a um grupo de pessoas com doenças de risco na associação Ser+ de prevenção e desafio ao VIH. Do seu trabalho autoral destacam-se a co-criação do primeiro espectáculo da companhia de teatro As Crianças Loucas, da qual faz parte desde 2017; o texto e co-criação de "Dentro3" para a Fábrica das Artes-CCB com Ana Catarina Santos; bem como o texto e co-criação do primeiro espectáculo do outro, "as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos", peça com a qual foi autor seleccionado pelo comité português do Eurodram em 2020. Co-fundador de outro.

https://www.facebook.com/silviograterol
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