da identidade e da política

Pensar como um homem de acção e agir como um homem de pensamento.
— Henri Bergson
 
Der Seiltänzer (O Acrobata), Paul Klee, 1923

Der Seiltänzer (O Acrobata), Paul Klee, 1923

 

Ensaio a partir de Pre-Apocalypse Now — capítulo 1: Política, de Sousa Dias.

Ler Sousa Dias e Maria João Cantinho que neste livro encerram diálogos sobre Política, Estética e Filosofia é um exigente exercício de profundo mergulho nas ideias e teses discutidas e, como em qualquer leitura em que nos sentimos absortos, um trabalho de levantamento dos pensamentos aqui levados sempre à frente, à sua radical conclusão e atravessados pela noção do seu nascimento. Claro que nestes processos longos e de imersão, justapomos ou tentamos colocar lado a lado da forma mais justa que sabemos os assuntos escritos (que traduzimos do melhor modo que conseguimos) e as nossas mais breves ou subterrâneas noções. Daí geram-se brilhos, abismos, planaltos, ventos e com eles construímos a experiência da leitura.

“Maria João Cantinho — (…) Em Portugal, porém, houve sempre uma espécie de silêncio e de suspeição relativamente a Marx. No entanto, ao invés dessa tendência, tu falas nessa «actualidade» defendendo-a com veemência. O tempo tem-te dado razão?

Sousa Dias — Objectivamente sim, sem dúvida, subjectivamente (consciência das pessoas, consciência dos povos), não. A mundialização do capitalismo, o capitalismo pós-queda do Muro, a crescente determinância social, socioeconómica, dos mecanismos financeiros internacionais, da economia «virtual» sobre a economia «real», a esclerose antidemocrática das democracias, a demolição em curso em todos os países, já até em França, do Estado social, de todos os direitos incluindo o direito ao trabalho (a precarização como nova forma, extrema, de proletarização), a normalização do estado de crise nas economias etc., etc., tudo isso prova a absoluta actualidade de Marx, tanto da sua análise teórica da «lógica» capitalista como da sua posição política revolucionária. Tudo isso prova que, como dizia Marx, o capitalismo não é civilizável, não é corrigível eticamente, que nem sequer é de vocação democrática, que o capitalismo é incorrigivelmente selvagem, anti-social, que a sua única e esquizofrénica lei, toda a sua dinâmica virtualmente infinita, é a da «reprodução alargada do capital». (…) É verdade que o capitalismo jamais prometeu o fim das desigualdades, que são, segundo ele, «naturais». Mas prometeu atenuá-las, reduzi-las cada vez mais, com o desenvolvimento tecnológico das forças produtivas e o crescimento da riqueza produzida, dos recursos materiais disponíveis. Ora, nunca como hoje foram tão grandes, tão exasperadas, as desigualdades, os «muros» erguidos entre ricos e pobres, seja entre classes sociais seja entre países, continentes e hemisférios, nunca como hoje foi tão gritante a situação de desastre social iminente, de colapso civilizacional, de pré-apocalipse. Eis o resultado, nos antípodas da «promessa» neoliberal, do capitalismo globalizado. O sucesso deste capitalismo, a sua astúcia, a sua glória ideológica depois da falência dos Estados ditos comunistas, foi convencer-nos de que não há alternativa, de que qualquer alternativa anticapitalista é ainda pior, de que um capitalismo mais «justo», sempre prometido e sempre adiado, é a única alternativa viável ao próprio capitalismo. As pessoas interiorizaram este mundo insuportável como o único mundo possível. Com efeito, o que é que permite às pessoas suportar o insuportável, e suportar-se, senão o facto de o próprio mundo exterior ter passado para dentro das pessoas, se ter tornado mundo mental? O exterior fez-se interior, o interior é como o exterior, reduzido, como diz Žižek, a uma «subjectividade sem substância» ou, antes, sem mais substância (até nos prazeres, na fruição, nos ideais de vida) que os clichés interiorizados da miséria do mundo, a uma subjectividade-ecrã desses clichés. Como não haveríamos pois de aceitar a realidade dominante, de não poder conceber uma alternativa, de não «exigir o impossível», se essa realidade se subjectivou, se tornou o nosso próprio desejo, nos formatou por dentro, fez de cada um de nós, «voluntariamente», um cliché seu? E isto a um tal ponto inédito que, como afirma algures Agamben, estamos hoje perante «o corpo social mais dócil e cobarde que jamais existiu na história da humanidade». Tal é o problema, o impasse presente.

Em todo o caso, deixa-me acrescentar, o comunismo de Marx, a Ideia comunista cuja actualidade defendo, ou seja, a Ideia de uma superior democracia por vir, não tem nada a ver com igualitarismo, excepto precisamente enquanto relação social estrutural. Nada a ver com uma igualização forçada dos homens e das vidas humanas, mas antes, pelo contrário, com uma comunidade capaz de fazer das diferenças entre os homens, e da afirmação dessas diferenças, as variáveis de uma função comum, comunitária. Talvez o comunismo, apesar da previsão «científica» de Marx, nunca venha a passar de uma bela Ideia, de uma hipótese idealista, de uma possibilidade ou «impossibilidade». Não deixa mesmo assim de ser a única possibilidade dos homens, a única forma de escapar ao intolerável, à catástrofe que vem.

(…)

MJC — (…) Lembras-te do Podemos em Espanha e de movimentações em Portugal — de uma nova esquerda — que acabaram por dar em nada? A minha questão é simples e decorre daqui: se essas ideologias morreram — porque isso é um facto — e se o espírito revolucionário caiu (e basta lembrar as marchas e as manifestações que houve nesse ano [2015, pela situação da Grécia com a redução do SYRIZA] em toda a Europa do sul, incluindo Portugal), o que advém daqui? Não te parece que atravessamos um período de um perigo extremo precisamente por causa desse vazio ideológico? Ou achas que esse vazio já se vinha arrastando?

SD — Claro que me lembro desses movimentos civis espontâneos surgidos no auge da crise económico-social um pouco por toda a Europa e até além-Atlântico: os occupy nos Estados Unidos, em Espanha os acampados, entre nós os indignados, etc., sem esquecer outras reacções colectivas mais agressivas, as revoltas juvenis violentas em França, na Bélgica e na Inglaterra. Mas, ao contrário de ti, nunca me iludi com esses movimentos, nunca esperei nada deles, nunca neles vi, nem de perto nem de longe, qualquer espírito revolucionário ou a eventualidade de uma nova esquerda em formação. E desde o início era de prever que eles desaparecessem tão depressa como apareceram (excepto se «legalizados», integrados como partidos no sistema de representação política que nunca puseram em causa, como o Podemos espanhol resultante dos acampados) e que não dessem em nada, porque esses movimentos, politicamente, ideologicamente, eram nada. Não foi o fim desses movimentos que criou o actual vazio ideológico: foi o vazio ideológico existente que permitiu esses movimentos. Repara, esses movimentos, até porque se pretendiam socialmente abrangentes e politicamente transversais, não tinham nem podiam ter carácter ideológico, não só eram sem ideologia mas, mais ainda, ostensivamente anti-ideologia. Eram movimentos de protesto de «cidadãos», assim assumidos, contra os políticos por si eleitos e que em seu nome levavam a cabo contra eles políticas austeritárias e autoritárias, antidemocráticas. Em suma, eram movimentos de pressão política articulados em torno de um vago programa a-ideológico de «mais democracia», de «mais cidadania», de «mais direitos», de «mais sociedade» e de «menos economia», etc., etc. Não concluas que não simpatizei com estes movimentos: simpatizo com todas as formas de resistência activa, de reacção popular colectiva, à realidade dominante (o terrorismo islâmico não tem nada a ver, muito pelo contrário, com essa resistência). Mas, repito, nunca tive ilusões, nenhum entusiasmo, com a eficácia política dessas iniciativas. Valeram o que valeram, e que não foi pouco, como óbvios sintomas circunstanciais de um mal-estar social generalizado que, esse, não é circunstancial. No entanto a sua acção, a sua força mobilizadora, estava condenada pela sua própria natureza apolítica, não ideológica, a durar o tempo de um fósforo. (…)

Esse entusiasmo esquerdista foi, ou pareceu-me ser, também ele, um signo da crise ideológica do nosso tempo, o signo da falência das ideologias político-partidárias da esquerda histórica, uma «vontade» de ideologia como reverso da desideologização do mundo contemporâneo. Há décadas que nos dizem que a nossa «condição pós-moderna» se define pelo fim das ideologias, de todas as grandes «narrativas» ideológicas modernas, tanto à esquerda como à direita. Viveríamos agora numa situação pragmática «desnarrativizada». O que, num certo sentido, é verdade. Só que — não gosto de repetir-me, já tentei explicá-lo no meu Marx e no meu Žižek, mas vou afirmá-lo outra vez — esta presente situação de consciência política, ou sociopolítica, não ideológica, pós-ideológica, configura ainda uma ideologia, e a pior de todas, a mais eficaz do ponto de vista do sistema capitalista imperante, a ideologia politicamente transversal do pragmatismo sem ideologia, da «política do possível»: uma ideologia que não se reconhece como tal, uma ideologia «branca» ou grau zero ideológico, aquilo a que chamei naqueles livros o possibilismo. (…) Claro que a situação é assustadora. Mas quem semeia ventos só pode esperar tempestades. 

MJC — Assustadora sim, mas o termo em si é demasiado vago, pois não sabemos já com que assustar-nos, ou não concordas? (…) Mas também estamos colectivamente assustados pelo grau de violência que pressentimos ser um modo de estar quotidiano (…). O medo - este que se vive de forma insidiosa e por toda a parte - não constitui o pior dos flagelos em democracia? Será este medo uma estratégia eficaz para um qualquer desígnio que pressentimos e que ainda não diagnosticámos completamente (pelo menos no modo de como estamos a vivê-lo)? E quando se fala de medo colectivo também temos de supor o limite da resistência e a potencial violência que se aninha nessa insatisfação colectiva. Essa é a tempestade (ou pelo menos um dos ventos) a que te referes?

SD — Há várias tempestades a formar-se nos ventos da Europa, uma tempestade nacionalista anti-europeísta, uma tempestade extremista neofascista, tempestades populares xenófobas e racistas, tempestades sociais de revoltosos precários e excluídos…, sem que se possa prever o que vem aí, o que vai acontecer. (…) Mas esta normalização, esta democracia securitária de liberdades restringidas e vigiadas, é já a entrada noutra coisa, numa nova forma esclerosada, estritamente formal, de poder democrático, e que é a democracia que vem aí, que está a chegar, a democracia “possível” com que pretendem iludir-nos. A democracia, tal como a conhecemos na história moderna europeia e ocidental, está em vias de desaparecer, de se tornar, de vez, coisa do passado. Em favor de um regime político pós-democrático, quer dizer, de uma democracia como mera forma, esvaziada de toda a efectiva democraticidade (direitos cívicos e sociais, Estado social, cidadania activa, imprensa e média independentes, etc.). Todo um processo, cada vez mais evidente, de desdemocratização das democracias liberais, de conversão das democracias liberais em pós-democracias. A pós-democracia como a democracia que nos dizem ser possível, democracia «descafeinada» na expressão de Žižek, sem substância democrática, não é propriamente uma ditadura na acepção clássica, uma forma nova de fascismo, uma não-democracia. Antes é, nas sociedades ocidentais e sobretudo europeias de tradição democrática, o modelo democrático conveniente ao capitalismo autoritário globalizado, que passa pela desregulamentação de todos os direitos, pela gestão dos medos e das inseguranças de populações precarizadas e desclassificadas, pela vigilância contínua em meio aberto de todos os «tropismos» sociais.

(…)

MJC — Daniel Bensaïd afirmou que a democracia constitui «o nariz falso do despotismo mercantil e da sua concorrência», num texto intitulado «Le Scandal permanent» (2009). De facto ela serve (e tem servido) esse intuito de impor o capitalismo de uma forma suave, fazendo-nos crer na sua eficácia e criando a ilusão de que é levada a todos os cantos. Do lado de cá, mais próximos do eixo franco-alemão e enquanto país do sul, nós já percebemos essa ideia de «insignificância» da democracia de que nos fala Nancy, no sentido de esvaziamento da sua essência, desse «formalismo» vazio de que falaste. E, ainda retomando uma ideia anterior de que já tinhas falado, a de que o capitalismo não está moribundo, ao contrário do que preconiza Žižek (…) Mas esta ideia de «pós-democracia» não coloca em causa a relação do homem com a sociedade (e não só com o mercado)? Que espécie de homem é este, que espécie sobreviverá a uma sociedade mais individualista, feroz e competitiva? E que espaço público lhe é garantido? Estamos a falar de direitos individuais, de uma liberdade numa sociedade coarctada pelo estado de excepção… ou achas que haverá uma adaptação, como sempre houve, ao longo da história?

SD — Nietzsche previu, no século XIX, a vinda do «último homem», do «homem chinês», como tipo antropológico universal. Chamava-lhe também o «supermacaco», antítese do «supra-homem»: em vez do homem para lá do homem por auto-superação espiritual, um infra-homem, o escravo «livre», por auto-satisfação material: «um pequeno prazer para de dia e um pequeno prazer para de noite» (cito, de cor, o Zaratustra). Um homem medíocre massificado, transversal a todas as classes, culturas e raças, desprezador de qualquer sentido de grandeza, como forma final, finistórica, do homem. Os Estados ditos comunistas, os Estados marxistas-leninistas, esforçaram-se por dar razão a Nietzsche, através da figura do «homem novo» socialista, do universal proletário: um povo de iguais. Pergunto-me se aquilo a que assistimos hoje à nossa volta não é a realização, mas numa versão «democrática» muito mais cínica e eficaz — porque operando por ilusão de livre auto-afirmação individual —, da profecia nietzschiana. Por toda a parte, à escala planetária, uma uniformização da vida humana, uma desdiferenciação dos modos de vida, uma generalizada ocidentalização das sociedades, das matrizes culturais, dos estilos e dos gostos, dos ideais e valores. E o que isso significa, ou implica: uma formatação humana por um modelo relacional sempre mais exasperado de sucesso pessoal, de competição interindividual, de sobreposição da não-relação individualista à relação social comunitária, do si-mesmo ao em-comum. Aquilo a que chamei pós-democracia não vai trazer, deste ponto de vista antropopolítico ou, como tu dizes, da «espécie de homem» correspondente, nenhuma novidade. Esse tipo de homem vem sendo já preparado, ou «adaptado» como dizes também — pensa nas gerações de jovens de hoje —, pela interiorização da sua condição de trabalho (e, pois, de vida) precária, das restrições de direitos e do desmantelamento do Estado Social, dos baixos salários para exigências técnico-profissionais sempre maiores do mercado, etc., etc. Era também a isso que me referia quando atrás falei da subjectivação da realidade capitalista, da subjectividade-cliché, de uma identidade subjectiva entre o real existente e o real possível (é por esse devir subjectivo, mais que pela sua lógica objectiva, que passa a força do neocapitalismo contemporâneo). Mas não me atribuas um pessimismo «realista» que não é o meu. Não há deveras grandes razões para optimismo mas, a ser pessimista, prefiro ser um pessimista alegre, idealista, que aposta, para lá do homem existente, do ser actual do homem, num homem em potência, no homem como, por essência, ser-em-potência, na potencialidade essencial do humano (e com ele da história). Onde cresce o intolerável cresce, na mesma proporção, o potencial de revolta. E as grandes revoltas colectivas nunca se fizeram anunciar, foram todas surpreendentes até para si próprias, não antecipadas, inantecipáveis (cada uma delas excedeu «subjectivamente», e nesse sentido criou, as suas próprias causas objectivas, que só a posteriori a «determinam» na historiografia).

(…)

Nunca se sabe de onde e quando a resistência pode sobrevir, sobretudo nesta época pré-apocalíptica ou dos Žižekianos «tempos do fim». Está tudo em aberto, tudo é possível, até mesmo uma revolucionária «exigência do impossível»(ainda que eu pense que a hipótese de revolução está excluída, ou votada ao fracasso, enquanto o confronto com a realidade capitalista imperial se fizer à escala local, nacional, e não se internacionalizar, não assumir a forma prática de uma nova Internacional). Por outro lado, concordo, como deves imaginar, com o que Bensaïd afirma da democracia liberal moderna como astúcia política capitalista, como a face «civilizada» do capitalismo. Já Sartre tinha dito a mesma coisa, e em termos mais radicais, ao denunciar essa democracia como uma «ratoeira para idiotas». Que é, na verdade, o que ela é. (…) Numa democracia liberal podes escolher tudo, tudo pôr em causa, és um sujeito soberano em igualdade de direitos com qualquer outro sujeito, na condição, implícita, de não pores em causa, de tacitamente aceitares com as tuas escolhas democráticas, o sistema económico (capitalismo) subjacente a essa democracia, a relação desigual estruturante desse sistema. A democracia liberal, as famosas «liberdades democráticas», essa ilusão de soberania sobre o teu próprio destino, é tudo o que o Ocidente, América e Europa, tem para vender (e com isso o despotismo mercantil de que fala Bensaïd).

(…)

SD — (…) De facto nunca renunciei a Marx, ao espírito, ou pelo menos a um dos espíritos, de todos o mais injuntivo (o espírito ético revolucionário, irredutível aos outros espíritos, «científico», messiânico, etc.), do marxismo de Marx (que, precisamente, se dizia não-marxista). Nunca reneguei e muito menos me envergonhei desses ideais da minha juventude como se eles fossem um romantismo político de adolescente que a vida se encarregaria de chamar à razão, nunca cambiei o Ideal na moeda do Real. (…) Ainda que me provassem que a Revolução é impossível, continuaria a pensá-la não como impossibilidade mas como impossibilidade (e com efeito o possível opõe-se logicamente ao impossível, mas ontologicamente decorre dele: é toda a história da vida e do homem, da recorrente criação de possibilidades a partir da realização de prévias impossibilidades). Porque sem a hipótese-Revolução haveria que aceitar a naturalidade, o determinismo natural, do intolerável, o naturalismo das desigualdades sociais entre os homens. Haveria que aceitar, em suma, uma «natureza» (animal) do homem, uma natureza educável mas não superável (é a mais velha concepção do homem, mas é ainda ela que se exprime no triste optimismo político da esquerda contemporânea e na sua reconversão programática a um capitalismo «ético»), contra o homem (e a sua história) como potência ou poder-ser (espiritual) sem natureza, infinita autotranscendência, infinita autocriatividade. Toda a minha obra, e não só o Marx e o Žižek, tira a sua razão de ser de uma aposta no devir revolucionário dos homens, na sua hipótese existenciável «homem espiritual» contra a realidade existente «homem animal», na hipótese de uma democracia por vir como comunidade afirmativa das diferenças individuais mas todas em função do em-comum, de uma relação social «comunitária» ou «igualitária», e é isto o comunismo, com este ou outro nome. Nesta perspectiva a minha obra sempre foi política, uma forma, espero eu, de activismo político, porque a teoria, pelos seus efeitos (percepções, afectos e acções), nunca é só teoria mas já uma prática, «prática teórica» como dizia Althusser, politicamente comprometida. Sempre me revi na famosa máxima de Bergson: pensar como um homem de acção e agir como um homem de pensamento.

(…)

Desafias-me a falar também do papel político eventual reservado hoje aos intelectuais. Pois bem: papel nenhum, no sentido vanguardista tradicional desse papel, de mobilização ou de organização, ou, sequer, de inspiração ideológica. Influência nula (excepto sobre as pequenas minorias que os lêem e admiram). Os intelectuais perderam de todo o prestígio e a função de consciência crítica das massas que outrora detiveram ou se atribuíram. A figura por assim dizer clássica do intelectual foi substituída, nesse prestígio, e no contexto do mundo mediático actual, da cultura massmediatizada (desvalorização da cultura «elitista» em favor de uma cultura mediocrática de massa), por outras figuras muito mais influentes, por uma raça despudorada de novos «intelectuais», tanto «escritores» como «pensadores», promovida por esse contexto. O telejornalista, por exemplo, tornou-se comentador, «especialista» de uma área informativa, política, economia, desporto, etc., e fazedor de opinião, ou então, pior ainda, «autor», romancista de sucesso, fabricante de bestsellers, de merda travestida de literatura. Já não estamos no tempo de Zola ou até no de Sartre e Foucault, nem mesmo no de Chomsky na América. E já o próprio Foucault opunha o seu «intelectual específico» empenhado em lutas radicais específicas ao clássico «intelectual total» ainda representado por Sartre que agia orientado por valores superiores e se empenhava nas «grandes causas», quando não na grande causa revolucionária. O intelectual clássico assumia-se como porta-voz dos sem-voz, como a vanguarda consciencial das revoltas contra as injustiças, e falava em nome dos injustiçados para suscitar uma consciência colectiva. Era a sua alegada «responsabilidade moral». Mas hoje, e basta pensar de novo nas redes sociais, toda a gente tem ou pode ter voz própria, toda a gente se «exprime» e pode constituir ou fazer parte de colectividades «em rede», virtuais mas passíveis de automobilização efectiva (…) e ninguém precisa dos intelectuais para se exprimir ou revoltar, para falar ou agir em seu nome. Claro que os intelectuais podem e devem ter uma intervenção política, seja prática seja teórica, ou ambas. Não porém arrogando-se uma eminente autoridade reflexiva ou moral, antes em intercessão co-activa com outras forças, com dinamismos sociais eventuais: intervir «com», e não «em nome de». O poder tradicional dos intelectuais, e o respeito que induziam nos Poderes, derivava todo do seu prestígio social, da sua «aura» para utilizar neste âmbito um termo caro a Benjamin, mas essa aura, insisto, extinguiu-se. (…) É cientes do seu actual impoder, da sua insignificância ou irrelevância pública, mas também do seu comprometimento objectivo com o estado do mundo, que os intelectuais têm de reinventar hoje o seu activismo político, e desde logo no seu próprio trabalho de escritores, artistas, filósofos ou investigadores. De qualquer modo parece-me que entrámos numa época sombria, bastante recessiva, e com tendência a agravar-se, para o trabalho intelectual sério. Tenho acerca disto os piores pressentimentos.”

SOUSA DIAS, 2016: 13-35

Não é este um pensamento intenso, vertical como o próprio autor idealiza em relação ao movimento de criação? Ideias de mundo concreto e as de outro em devir com as quais lidamos necessariamente numa óptica de embate, porque nos vemos cair quando pensamos em vários aspectos nossos? Apesar de estes nos agarrarem e de alguma forma darem chão - não nos deixam no abismo porque apresentam uma proposta, são, como dito, uma prática teórica e isso alimenta o espírito; mesmo que com piores pressentimentos denotam uma vontade de resistência interior.

Basta pensar na pintura de Klee que encaderna estas ideias e tudo isto parece muito claro. Mas e se olharmos a nossa identidade à luz desta figura? Esta ideia de pós-democracia parece também colocar isso em causa com enorme força: a relação do homem com ele próprio. Estamos pela conjuntura social obrigados a pensar primeiro esta noção, só talvez depois a de comunidade. Parece que se criou um grande fosso entre estes dois núcleos, que largamente dista a ideia de indivíduo e a de global, a de sujeito e concreto, a de objecto e objectivos. É por essa contradição e embate de linhas, partindo-se umas às outras, que se tem a ideia de abismo, de apocalipse. Vemo-nos diariamente a pisar estes fragmentos estilhaçados, sem nos querermos cortar em nenhum deles. Daí resulta que, em primeira instância, mesmo no processo identitário nos sintamos a saltar entre vários pólos e vejamos a nossa imagem tão separada e cruzada como os fragmentos sobre os quais andamos.

Considerar todo o acto como possível de ser visto enquanto ideológico, porque contém uma ideia e desencadeia um programa de ideias, incluindo umas, excluindo outras, carregando sempre uma sombra, mesmo em estagnação: uma marca que fica, nas pessoas, nos lugares, no tempo; presença ou mancha sem a qual não é possível existir. Lutamos então contra essa enorme dificuldade de nos sentirmos inteiros com a verdadeira imagem da identidade: autónoma, segura, consciente. Neste questionamento constante, forçado pelo meio social (e que depois se eleva quando se fazem leituras como esta), pergunto se não é possível a nossa identidade formar momentos de forma líquida, rizomática, indecisa pelos cruzamentos de tudo isto, pela sua vontade em devir. Isto seria compreender o ser como um projecto sempre inacabado, constantemente transmutado, não-totalitário pelos embates e imobilismos causados, susceptível ao outro, a questionar as forças categóricas das máximas que compreende como necessárias e as necessidades mundanas.

Pode essa imagem caleidoscópica ser aquilo a que, entre Žižek e Sousa Dias, aparece como subjectividade-ecrã pelos clichés interiorizados, pela falta de substância? Porque ela parece não ter norte, qualquer orientação; e luta, entre as forças mentais em choque, por um foco. E aqui o impasse é claro: como o intervalo entre a acção e o pensamento, entre o real e o ideal. Mas não queremos uma identidade «possibilista» ou «branca» — o meu pai quando nos serve um óptimo jantar diz várias vezes: “isto foi o que se pôde arranjar” — nada disto me preocupa quando se fala de muita e óptima comida na mesa porque não passa de uma brincadeira paternal, já a visão do mundo através deste prisma entristece-me e aflige-me.

Tento olhar as formas que o corpo tem de se comportar para pensar sobre isto: quase tudo o que fazemos é repetido e inconsciente, até o que dizemos em instantes. Tomo banho sempre da mesma forma — é assustador quando se tenta copiar a coreografia embriagada que de manhã sai sem pensar e depois já não é possível. Serão isto formas de acordar o ser para a liberdade, pelo espaço que isto deixa livre para o pensamento, ou isso seria o exercício da possibilidade múltipla nos vários aspectos diários, o questionamento constante?

Todas estas aparecem-me como questões de grande política, autojustificadas se emanarem dos ossos, por dentro, sem que se dê conta: exigem grande coragem, pois resistem para nos lermos e vermos o mundo, e ainda mais se para nele agir.

 

Referência
SOUSA, Dias, PRE-APOCALYPSE NOW — diálogo com Maria João Cantinho sobre política, estética e filosofia, Lisboa: Documenta, 2016

João

João Leão nasceu em Lisboa em 1995. Estudou na Escola Artística António Arroio (Fotografia), Antropologia na FCSH-Nova e é licenciado em Cinema (Realização) pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2017), assinando três curtas-metragens. Integrou a equipa de Realização e de Imagem a lado de realizadores como: Miguel Clara Vasconcelos, Nathalie Mansoux, Diogo Baldaia, Leonardo Mouramateus, Marta Mateus, Felipe Bragança, Francisca Manuel e Carlos Conceição. Desenvolveu a concepção de imagem com Vasco Araújo na ópera "A Voz Humana" de Lúcia Lemos. Junto de João Onofre preparou a sua nova obra apresentada na exposição "Once in a Lifetime [Repeat]" – Culturgest. Trabalhou na construção do novo filme de Pedro Costa: "Vitalina Varela". Co-criou e interpretou o primeiro espectáculo do outro "as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos". Co-fundador de outro.

https://www.facebook.com/joaosleao
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