sobre a criação agridoce de novos grupos artísticos

Carta alegre pessimista,

hoje nasce para o público um grupo do qual me orgulho bastante, o outro, que criei com a Patrícia, a Sofia e o João, três pessoas de quem gosto cada vez mais. Hoje estreio um espectáculo com outra nova companhia, as Crianças Loucas, com o Bruno, o João, o Rodrigo, o Vicente, o Sala e o Biu. Também hoje a Bruta estreia o seu segundo espectáculo e alguns foram meus colegas de turma. Tudo isto em três curtos dias. Mas não é disto que quero falar.

Vou socorrer-me de um autor que o João nos deu a conhecer (ao outro):

 

“Por toda a parte, à escala planetária, uma uniformização da vida humana, uma desdiferenciação dos modos de vida, uma generalizada ocidentalização das sociedades, das matrizes culturais, dos estilos e dos gostos, dos ideais e valores. E o que isso significa, ou implica: uma formatação humana por um modelo relacional sempre mais exasperado de sucesso pessoal, de competição interindividual, de sobreposição da não-relação individualista à relação social comunitária, do si-mesmo ao em-comum.”
Sousa Dias

 

Este pequeno excerto é para mim tão pertinente, e é para nós tão pertinente. Parece que a lógica de mercado transversal a todos os domínios da vida (das relações afectivas à arte) se nos apresenta como inevitável, como a única possibilidade. Ainda que queiramos fugir a esta inevitabilidade, parece que tudo e todos nos empurram para este lugar de solidão, de sobrevivência, de nós contra eles, contra o mundo. A competição que sempre vimos entre as gerações mais velhas já surge nestes novos grupos, e reflecte-se não em guerra aberta, mas na falta de diálogo, na mesquinhez, frutos da insegurança e instabilidade desta gente nova a ver a vida passar tão rápido que nem consegue agarrar nada. “E eu? E a minha voz no meio deste ruído?”

A sociedade dos números obriga-nos a lutar contra qualquer coisa, e nós viramo-nos uns contra os outros. É a maior derrota. E somos tão novos, tão novos e já com isto tudo. E daqui a 20 anos? Eu sei que não quero perder amigos para isto. Todos gostamos de dizer que acreditamos em pessoas e não números, e no entanto parecemos sempre prontos a deslizar para um quotidiano do “eu versus os outros todos 1 2 3 4 5000” e nem pensamos nisso, eu não penso nisso 99% das vezes.

Vivemos o modelo possível, a arquitectura do medo, do dinheiro, do sonho americano, do salve-se quem puder; ao qual Sousa Dias chama de Possibilismo, a ideia de que a alternativa ao modelo vigente só pode ser o modelo vigente 2.0 e não outra coisa radicalmente diferente. E não podemos pelo menos tentar a empatia, o reconhecimento como derradeira arma? Sei que vou ficar contente com a Bruta mesmo não podendo ir vê-los, sei que vou ficar contente com o primeiro espetáculo das Crianças Loucas, estou ansioso por novidades do Teatro da Cidade, dos Aueéééu, dos Mascarenhas-Martins,  ainda hoje recebi a newsletter do "Esta Noite Grita-se", um projecto cada vez maior da Inquietarte; estão a nascer também uns meninos novos muito interessantes que se chamam Bestiário, e esqueço-me de muitos, mas espero não ferir orgulhos.

Não só conheço estes grupos, como reconheço estes grupos. E posso reconhecê-los e discordar com algumas opções ou linhas estéticas? Sim. Não há espaço para tanta gente? Se calhar não. Se calhar foi por isso que o outro nasceu na internet, um espaço democrático que quase não cobra renda, não vende bilhetes, não paga impostos, não precisa de subsídios e não gasta água ou luz. Mas claro, em breve vamos querer mexer-nos num lugar qualquer, vamos precisar de um espaço como os outros, de dinheiro, e como vai ser então? Inveja, cobiça, consegui, sobrevivi!? Se calhar. Ou então, e não gostaria de usar uma toada tão poética e abstracta, mas sim, gostava de falar do impossível, gostava que o impossível existisse. E o impossível passa simplesmente pela redução da distância, com aquilo a que algumas pessoas gostam de chamar amor, outras empatia, outras generosidade, outras humildade, outras humanidade. Sempre haverá gente a chamar isto de propaganda, mais uma destas que não dão em nada, é tudo muito bonito mas... A essas não posso dizer nada, afinal, estamos sozinhos com a nossa consciência.

Envelhecer mal é deixar de falar, é radicalizar, é deixar instalar o terrorismo da verdade dogmática individual. Cada ano é mais uma farpa, para calar, para amuar, mais um muro que se constrói, mais um pretexto para ficar cada um no seu cantinho, no seu egozinho-egozão, e para construir este fosso basta uma palavra mal colocada numa saída à noite. E menos merdas? Vamos todos conversar, partilhar alguma coisa, ideias, materiais, textos, direitos? Deixo o convite, mas sou péssimo a marcar jantares. Quiçá daqui a uns tempos organize um convívio para quem quiser aparecer. Ou então não, se calhar amanhã já estarei novamente consumido por este exagero de vida.

Desconfio sempre deste tipo de posições excessivamente diplomáticas — que aqui assumo — por tão facilmente resvalarem na inacção, na palavra apenas. É o problema das utopias e dos ideais desviantes nesta conjuntura obrigatória, possível. Mas de facto é assim que me sinto hoje, e nem que seja por ser quase natal, queria dizer isto. Ah, e porque palavras nunca fizeram boas prendas, partilho com quem queira uma base de dados de comunicação para grupos que estão a começar que estivemos a reunir para o outro, num gesto natalício. Quem quiser, mande mensagem, para sabermos quem é.

Ainda vamos a tempo.

Noutra nota, nunca a chuva soube tão bem.

 
Os Amantes, René Magritte, 1928

Os Amantes, René Magritte, 1928

 

Referência
SOUSA, Dias, PRE-APOCALYPSE NOW — diálogo com Maria João Cantinho sobre política, estética e filosofia, Lisboa: Documenta, 2016

Sílvio

Sílvio Vieira nasceu em Leiria em 1994. Estudou Sociologia no ISCTE-IUL e é licenciado em Teatro (Actores) pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2018). Complementou a sua formação académica com Miguel Seabra, Sofia de Portugal, Philipp Rost, Mike Bernardin, Monika Gossmann e Jan Pappelbaum (cenografia). Iniciou o seu percurso como actor no Teatro da Cornucópia, sob direcção de Luis Miguel Sintra, de onde destaca os espectáculos "Pílades", "Lisboa Famosa (Portuguesa e Milagrosa)" e "Hamlet". No Teatro Nacional D. Maria II trabalhou com Tiago Guedes, Álvaro Correia e Miguel Loureiro. Em teatro trabalhou ainda como actor em espectáculos de Ana Zamora, Ricardo Neves-Neves e Carlos J. Pessoa. Intérprete em performances de André e. Teodósio e Patrícia Moreira. Em cinema trabalhou, entre outros, com Jorge Cramez, João Leão e Pedro Cabeleira. Lecciona teatro a um grupo de pessoas com doenças de risco na associação Ser+ de prevenção e desafio ao VIH. Do seu trabalho autoral destacam-se a co-criação do primeiro espectáculo da companhia de teatro As Crianças Loucas, da qual faz parte desde 2017; o texto e co-criação de "Dentro3" para a Fábrica das Artes-CCB com Ana Catarina Santos; bem como o texto e co-criação do primeiro espectáculo do outro, "as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos", peça com a qual foi autor seleccionado pelo comité português do Eurodram em 2020. Co-fundador de outro.

https://www.facebook.com/silviograterol
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