rascunho para uma descrição

Havia chovido naquele dia.

O solo fértil do acampamento acomodava um conjunto incontável de caravanas castanhas cobertas de uma madeira trabalhada amadoramente pelo proveitoso impulso da necessidade. Nas janelinhas, de contorno irregular, vislumbravam-se cortinas de variadas cores e feitios, subjugadas ao gosto e à destreza do inquilino que nelas habitava. As rodas, também elas feitas de madeira, mergulhavam num tapete de lodo cintilante aquando do contacto despropositado do terreno com a luz ténue que alumiava toda a área. Deste modo, o chão, outrora tão liso como um recinto pedonal, achava-se perfurado aleatoriamente por pegadas humanas, cuja forma fazia adivinhar a idade daqueles a quem pertencia o calçado improvisado a que o frio obrigava. As frinchas, características da sola do sapato, encontravam-se perfeitamente demarcadas, formando tanques de tamanho reduzido onde as crianças se divertiam a assistir ao afogamento deliberado de seres minúsculos.

Um menino, de cabelo desconsertado, entretinha-se a desenhar naquele papel de cor imprecisa que o fenómeno natural havia proporcionado. Os olhos negros, pontuados pela neblina branca de uma cegueira desenvolvida dentro da barriga de uma mãe cuja cara jamais conhecera, contrastavam com os rolos de fumo branco e denso que invadiam o céu indefinido por uma escuridão cerrada. A fogueira da comunidade, alimentada por um tronco gigante que fazia crepitar um lume incapaz de dissipar o frio daqueles cujas roupas eram um remendado irremediável, crescia e decrescia ao sabor de um vento cortante, implacável para qualquer garganta. Assim, o fumo branco, colorindo o céu de forma desigual, emergia para um vácuo obscuro como uma cobra que serpenteia para um infinito inconquistável para qualquer uma daquelas almas marginais.

Do círculo desenhado pela disposição das caravanas surgia um homem, posicionado de costas para toda aquela festa de luz, fumo, sujidade e pobreza. O chapéu preto que usava enjaulava as madeixas rebeldes, resistentes na luta contra aquele aprisionamento sem sentido. Na pele, de tonalidade morena, destacavam-se as cicatrizes profundas, com as quais concorriam um conjunto de ferimentos mais recentes, protegidos por uma crosta infrutífera no que concerne ao desaparecimento total e conciso de tais golpes. O nariz, perfeitamente desenhado, encontrava-se atenta e permanentemente vigiado por dois olhos que dificilmente conseguiam mirar a tempestade ou a bonança, que constituem as leis do tempo. Estes mesmos olhos, envoltos em sobrancelhas espessas e carregadas, foram presenteados com umas pestanas brilhantemente penteadas e alinhadas, como se a distância entre estas houvesse sido submetida a cálculos matemáticos. As narinas, repletas de secreções corporais acumuladas pelo tempo, haviam sido renegadas a um desprezo notório pela sujidade encrostada, anfitriã de uma imundice que a indiferença iria perpetuar. Sobre o lábio superior, colorido de um vermelho rubro, assomava-se um bigode rebelde, ansioso por estender a sua área de influência pelo espesso beiço perfilhado por fantasias alheias. O pêlo grosso e preto que o constituía contrastava com a macieza sensível de duas faces, violada unicamente pelas cicatrizes que proliferavam como uma peste avassaladora e mortífera. Do pescoço enfezado, irrompia a maçã-de-Adão – prova de um pecado que ninguém houvera cometido, e de todos aqueles que o Homem, em nome de um Deus, cometera desde o início dos tempos. Um surro cerrado adornava-o por completo, confundindo-se com a sordidez natural de uma pele de matiz trigueira. Nos ombros descansava uma camisa, outrora branca, de onde apareciam desordenadamente um emaranhado de pêlos banhados num suor facilmente dissipado pela ventania agoniante, cujo arrepio o esforço físico jamais minora. Sobre esta, repousava o colete de um castanho sujo e cansado - suporte de um trabalho árduo e jamais recompensado. E depois aqueles braços descaídos, ornamentados com veias salientes, cujas cavidades lutavam com bravura contra o fluxo que encaminhavam, o qual, carecendo de tantos nutrientes indispensáveis, almejava igualmente pelo desprendimento daquele corpo que pouco tem para satisfazer as necessidades fisiológicas. O recorte pontiagudo do colete, em concordância com a liberdade da camisa desfraldada, bailarina de toda aquela agitação, anunciava uma fivela grossa, demasiado pesada para um corpo tão franzino. A negridão das calças encobria o trilho percorrido pelo cinto, também este negro como o coração deste indivíduo que parece já não sentir. Por sorte, esta era a única veste presenteada com uns tímidos buracos – característica comum, talvez o ponto de referência que singularizava aquela gente –, escondidos num calcanhar de sola gasta. As pernas, paus finos e irregulares – alicerce de umas calças submissas às ordens do vento – sussurravam a incapacidade de preencher aquela largura inútil. Os pés, envoltos num calçado quase descalço, apresentavam estilhaços provocados pelo impulso libertino e irracional que clama pelo conforto, contrariado pelo frio gélido que obriga ao revestimento.

Subitamente, o riso confortável e enternecedor das crianças havia cessado. Os adultos esfarrapados, filhos de uma etnia renegada por Deus, ergueram-se dos seus afazeres silenciosos. O irmão de olhos tortos estava certo quando afirmou a existência de uma presença indesejável que os seguia como uma águia, ou melhor, um abutre negro que não aguardaria as suas mortes para iniciar a refeição…

Ali se encontravam talvez uma dezena de senhores perfeitamente vestidos e providos daqueles que seriam os instrumentos purificadores da terra. Na cabeça surgia uma boina verde-escura, perfeitamente desenhada, cuja pala introduzia um rosto impecavelmente barbeado e perfumado. Fazia-se adivinhar um cabelo minuciosamente rapado pela liberdade restrita, facultada pela águia suástica. A escuridão da noite permitia vislumbrar a existência de uma camisa de um branco reluzente, perfeitamente engomada e apertada com minúcia até ao último botão. A gola, recortada o suficiente para se fazer notar, encobria uma gravata que aconchegava um pescoço branco e límpido como o puro-sangue ariano! Desta última, apenas se observava o nó, brilhantemente rematado, perecendo o seu seguimento sob um casaco verde-escuro, também este provido de uma gola medida em louvor dos símbolos ideológicos indispensáveis à afirmação das nobres ideias defendidas. No casaco, adornado por botões propositadamente salientes, esbatiam-se um conjunto de medalhas ordenadamente posicionadas, as quais, por sinal em grande número, jamais homenageariam as vidas ceifadas! O frio cortante da noite obrigou ao recurso da gabardine, os ombros preenchidos por almofadas que contornavam e salientavam ou remediavam a inexistência de uma robustez conjecturada pelo simples puxar de um gatilho. As calças vincadas, concordantes com o verde-escuro do casaco, faziam jus à espessura de umas pernas perfeitamente alimentadas pelo canibalismo indirecto que sustentou a águia suástica. E por fim, o calçado. As botas, admiravelmente escovadas e engraxadas, submergiam numa terra lamacenta, saturada pela chuva intensa.

Ninguém ali presente reparou em tais pormenores. Um silêncio cerrado havia assaltado todo o acampamento. Ao fundo, a fogueira, esfomeada por lenha que não viria, resmungava: “Tss! Tric! Truc! Rô! Tssen! Tssen!”, gemidos proferidos pelo mirrado tronco que as labaredas, desprovidas de qualquer compaixão, aniquilavam. E subitamente, o ar espesso e desconfortável adquiriu forma humana - olhos coloridos de um azul esbranquiçado, minúsculos como os bichinhos afogados que as crianças haviam aplaudido com júbilo, transbordavam de um ódio infundado, porém firme e solidificado.

Os senhores da guerra ordenaram a formação de uma fila. E subitamente, as luvas pretas de cabedal, que aqueciam as mãos de natureza fria e desumana, procuraram com uma calma propositada algo no interior da veste cómoda que trajavam.

Abruptamente, o menino de cabelo grisalho e desconsertado, sortudo pela cegueira que Deus lhe impingira, abandonara violentamente os trapos remendados que o cobriam. A sua alma diluíra-se naquele fumo que caminhava a passos largos para o céu. O corpo perecia no chão. A cabeça descansava aconchegadamente sobre um ramalhete de cravos vermelho-rubro, sendo que as pétalas, cansadas de servir a hipocrisia humana, se haviam diluído instantaneamente, formando um líquido espesso – porta directa para a liberdade. Ao fundo do pescoço, a camisa fresca de cor indefinida pela sobreposição de tecidos diversificados, desencobrira uma barriga seca e manchada por largas borbulhas vermelhas, cujo centro impreciso se confundia com o cor-de-rosa escuro que o incómodo da coceira fizera proliferar. Os olhos escuros, ainda que pontuados pela névoa da cegueira, permaneciam abertos transcendendo qualquer olhar humano que os focasse. Uma das mãos descansava junto da face esquerda, encontrando-se esta última inclinada para o mesmo lado. Da boca entreaberta escorria um fio de sangue, o qual, não provocado pela bala que lhe perfurara o crânio, havia sido provocado pela dispersão que aquele primeiro disparo havia fomentado. A inicial fila ordenada fora corrompida pela indignação de uma comunidade perante o fuzilamento daquele filho de uma mãe, neto de um avô, amigo de uma amiga, descendente de uma espécie.

Em poucos segundos, a ordem recompusera-se sobre os desígnios da força. Todo o terreno se encontrava deserto de qualquer corpo errante. Orientados de forma dispersa por todo o espaço, findavam-se corpos de variadas formas e feitios, posicionados de acordo com uma energia instintiva interrompida pela santa bala da execução.

A fogueira não se apagara. Pelo contrário, espalhara-se por todo o recinto, purificando todo aquele espaço, conspurcado por mais um assassínio em massa. A terra lamacenta – leito ornado a cravos -, recebera de braços abertos aqueles filhos condenados pelos próprios irmãos. Como boa progenitora, a mãe natureza tudo acabaria por perdoar, acolhendo tanto a imaculabilidade dos assassínios, como a devassidão daquelas criancinhas de etnia cigana.

O dia raiou. Os raios solares perfuraram suavemente as nuvens, abrindo largas fendas no nevoeiro cerrado.

E a paz reinou.

 

FIM

 
High Speed Press Plate #3, José Luís Neto, 2006

High Speed Press Plate #3, José Luís Neto, 2006

Patrícia

Patrícia Moreira nasceu em Lisboa em 1990. Licenciada em Tradução (Inglês e Castelhano) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2012) e Teatro (Actores) pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016). Complementou a sua formação académica com João Brites, Rui Pina Coelho e Eugénia Vasques. Vencedora do concurso literário “Belas Letras” organizado pelo Instituto Politécnico de Lisboa (2015) com o texto "Da Seiva e do Sal". Iniciou o seu percurso como actriz na Companhia Animateatro e colaborou com a Rugas Associação Cultural. Em cinema trabalhou com Pedro Cabeleira na longa-metragem "Verão Danado". Em 2019 co-criou com Diana Narciso o espetáculo "Mater Aviam". Co-fundadora do coletivo outro, co-criou e interpretou o espetáculo "as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos". Em 2020 criou e interpretou a performance-instalação "SECRETUM" na Estufa Fria de Lisboa. Fundadora da Tremor Associação Cultural.

https://www.facebook.com/patricia.rscm
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