ARENA /2021
ARENA é um espetáculo de teatro sem palavra. Vive do jogo dos actores uns com os outros e com os objectos, propondo uma reflexão sobre o que significa estar em assembleia. Coloca para isso quatro peças no tabuleiro: o espaço, o público, um alienígena e Jan, personagem interpretada por seis actores.
ARENA é o primeiro de uma trilogia de espectáculos que dialogam de forma única com o espaço. Esteve em cena de 25 de Novembro a 19 de Dezembro de 2021 na Garagem do Chile, uma antiga oficina de automóveis no centro de Lisboa. Uma criação de Sílvio Vieira.
1h M12
direcção Sílvio Vieira
interpretação Anabela Ribeiro, André Cabral, Catarina Rabaça, Inês Realista, Miguel Galamba, Miguel Ponte e Pedro Peças
colaboração Nídia Roque
cenografia e figurinos Ângela Rocha
desenho de luz Manuel Abrantes
assistência de cenografia Diogo Gonçalves
fotografia Leonor Fonseca
teaser e registo António Mendes
captação de som Miguel Coelho
operação de luz Janaina Gonçalves
assessoria de imprensa Raquel Guimarães
produção outro
parceiros República Portuguesa | Ministério da Cultura, Câmara Municipal de Lisboa, Fundação GDA, Fundação Calouste Gulbenkian
residência de co-produção O Espaço do Tempo
agradecimentos Ana Catarina Santos, André Pato, Bernardo Souto, Biovilla, Cindy Vieira, Francisco Leone, HIT Management, Graciana Romeo, Juan Capriotti, Guilherme Gomes, Guilherme Moura, Laura Frederico, Leonardo Garibaldi, Pedro Carraca, Pedro Mendes, Primeiros Sintomas, Ricardo Santos, Rui Seabra, Sérgio Henriques, Teatro Meridional, TNDM II
pintura de cartaz: Teurgias, Maximo Graterol B., MMII
SOBRE ESTE ESPECTÁCULO
Para a criação de ARENA inspirámo-nos em três artes — a música, o cinema mudo e o Foley — convocando o que delas fosse traduzível para o ofício do encenador e do actor em carne viva.
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Perguntámo-nos se seria possível inverter a função aduladora do som no teatro. À semelhança do coreógrafo que pega no Lago dos Cisnes e nele descobre movimento, poderiam encenador e actor encontrar na música sequências narrativas? Algumas cenas presentes neste espectáculo surgiram com esta premissa. -
Os mestres do cinema mudo como Charlie Chaplin, Buster Keaton ou Harold Lloyd inspiraram em nós uma linguagem teatral que se afasta por completo da palavra e se enraíza na fisicalidade do intérprete, na manutenção do mistério e na exploração dos objectos — como encontrar a surpresa dentro do que se vai tornando previsível? -
A técnica de Foley emergiu nos anos 20 com o advento do teatro radiofónico. É frequente criar-se apenas a ilusão do som, utilizando objectos longínquos dos originais embora semelhantes no perfil sonoro. A presença discreta do Foley neste espectáculo consolida uma das premissas principais do trabalho: reinventar o objecto do ponto de vista formal e funcional através do engenho na sua manipulação.
IMAGINAR: mais além do bem e do mal
É oportuno afirmar que existe, hoje, uma necessidade premente de silêncio. Se o silêncio antecede a escuta, o que aconteceria se o mundo inteiro emudecesse por dois minutos?
O ruído alastrado a todos os domínios da vida encontra do outro lado um pedido exasperado por silêncio. Julgo que a arte tem vindo a denunciar esta saturação, e ARENA fará parte dessa voz para quem queira vê-la assim. Não obstante, gostaria de pensar que a sua maior força reside noutro sítio.
Se o belo está além do bem e do mal, a beleza de um espectáculo mudo estará menos no dizer político enquanto tema ou reacção (geralmente pessimista), mas sobretudo no elogio ao acto teatral como um manifesto imanente de conjunto, revelador de humanidade, e que coloca em evidência as relações entre as pessoas subtraídas ao estrépito das palavras e das máquinas.
Março de 2020, Sílvio Vieira
CRIAR: NO OLHO DO FURACÃO
Hoje entreguei as chaves da Garagem do Chile.
Os últimos 5 meses foram muito desgastantes, mas acredito que as coisas belas dificilmente serão fáceis, agora ou no futuro. Pensei algumas vezes na expressão “olho do furacão” para descrever aquilo que vivemos na Garagem, ou no sentido da palavra “oásis”.
Orgulho-me muito da equipa que escolhi, e de como compreenderam o nível de exigência deste projecto que sempre foi mais do que um espectáculo. O risco era também este: que o projecto fosse mais interessante do que o espectáculo. A uma semana de estrearmos, ainda não tínhamos 10% da bilheteira vendida. Chegámos a conversar sobre o cenário real de não termos público, e de algumas récitas terem de ser canceladas. De forma surpreendente para nós, que estivemos fechados na caverna durante 3 meses a criar sem grande coisa a que nos pudéssemos agarrar, não foi isto que aconteceu. Nas últimas três semanas esgotámos, e desconfio que continuaríamos a esgotar se em Janeiro ainda lá estivéssemos.
Sem texto, rejeitando a vontade tradicional de procurar referências como quem rejeita os mestres, agarrámo-nos uns aos outros e àquelas paredes e começámos a traçar um caminho de descoberta, afinando inconscientemente a coisa entre a concretude narrativa do teatro e a abstracção por vezes total da dança — ambas as artes, considero, têm nessas medidas antagónicas a sua fragilidade maior, pelo menos no que respeita à sua comunicação com o espectador. Sabíamos correr um risco com o que estávamos a criar, à altura daquele que corríamos com o monstro logístico que tínhamos em mãos — as licenças, a bancada, os contratos, a segurança, os vizinhos, etc. Acabou por ser um risco muito frutífero e que resultou num pequeno fenómeno de boca a boca, numa altura em que assistíamos a novas medidas restritivas e a quebras de público por excesso de oferta.
Pareceu-me na altura que quando o espectáculo corria mal o público elogiava o espaço e o esforço em consegui-lo, e quando corria bem falavam menos da garagem em si e mais da forma como foi habitada, das imagens e do pequeno cosmos que ali criámos. No final de contas, era isto que interessava.
Penso que preenchemos com esta hora-por-dia uma lacuna que se tem tornado cada vez mais evidente nos últimos anos, resistindo a poderes que parecem obrigar-nos a tomar uma posição em relação a tudo e a nada, a inserir-nos em gavetas temáticas ou ideológicas, porque foram eles próprios submetidos a outros poderes para que o seu trabalho — os seus ciclos, festivais e programações — visse a luz do dia, à razão da “pertinência”. Já vi espectáculos pertinentes, mas nunca saí de um achando que era impertinente. A pertinência de ARENA estará nesta resistência, na vontade de experimentar uma liberdade nossa e de procurarmos a arte e o silêncio, o belo pelo belo, essa coisa que despoja a alma dos seus muros cinzentos e a eleva acima da banalidade à superfície. A alma aberta e frágil, a nossa e a de quem nos vê, deve ser o nosso objectivo maior enquanto artistas.
Lembro-me de estarmos em residência e de dizer à equipa que o que procurava num espectáculo, como na arte, era a catarse, que definia para mim como um estranho equilíbrio de força e delicadeza que carregava comigo minutos depois de assistir a algo sublime. Por muito gasta que esteja também esta palavra, não encontro outra, e roubo a expressão a Dostoiévski: “amor por toda a humanidade”, que sempre se expressa em lágrimas e num poderoso sentimento de compaixão por todos sem excepção, e que se dissipa ao andar. Estará na natureza deste sentimento que seja raro? Absolutamente. Encontro no teatro (quando é feliz) uma capacidade singular em produzir este sentimento, e de o evidenciar como nenhuma outra arte na sua partilha com os outros que connosco assistem. Para mim, o final do nosso ARENA era isto: já não há actores, são todos espectadores de um fenómeno silencioso e sublime, um círculo de fogo incendiado acima das suas cabeças, e que queima com a lentidão certa e da forma mais justa que encontrámos, recuperando no fogo a ancestralidade sobre a qual se defenderá sempre a arte teatral sobre todas as invenções tecnológicas de hoje e das que estão por vir: a necessidade vital de estarmos juntos, por muito que pensemos gostar pouco de pessoas.
Aprendi com esta experiência que a palavra pode ser um instrumento fortíssimo, mas que raras vezes é bem empregue: ou é mal escrita, ou é mal dita, ou é tão bem escrita e bem dita que só os académicos a entendem. Aprendi isto também com a minha própria dificuldade e falhanço em lidar com ela. Receava trilhar um percurso profissional assim: de referências e palavras caras, posicionando-me cada vez mais num circuito de elites. Fico muito feliz por termos feito algo que pode chegar a toda a gente, à maneira do filme mudo, que de tão simples e aberto se torna múltiplo, e de assim termos, também neste ponto, rejeitado o academismo que tantas vezes afasta o público das salas e nos remete a fazer espectáculos para nós mesmos, para os nossos amigos, colegas e professores.
Trabalhámos com um orçamento que não teremos tão cedo, e que só veio provar que para o nosso trabalho é preciso investimento. Mesmo esgotados durante um mês, a bilheteira mal deu para cobrir a renda, apesar de ter sido esse o grande objectivo desde o início: provar que o tempo extra que podemos estar em cena (comparando com 1 semana noutros sítios) pode pagar o lugar que escolhemos para o fazer, à nossa maneira. Ainda assim, dividindo o orçamento global pelo número de espectadores que foram ver, quase mil, o custo da comparticipação por pessoa, entre apoios públicos e privados, ascende aos 85€ — um valor elevado mas que não deve nem roçar com outras coisas chocantes que vemos por aí este ano, de espectáculos feitos com 60 mil euros para 100 pessoas num fim-de-semana.
Obrigado a todos e a todas que comigo caminharam, por terem construído este espaço de liberdade em direcção a uma utopia sempre insatisfeita. Devo um agradecimento especial ao meu Miguel, amparo silencioso de infinito génio e paciência, que nos presenteou com a ideia para um final inesquecível, além de tudo o resto que de mim teve de suportar; à Nídia, que navegando em mares nunca dantes navegados conseguiu criar e cuidar dessa estrutura latente e tantas vezes ignorada sobre a qual os artistas gostam de criar — um tecto, uma casa; e à Angela, artista exímia, generosa, de ímpar capacidade em articular a ideia à sua execução, e com uma tão rara qualidade de trabalho que estimarei sempre acima de qualquer outra, por ser essa a que separa a mediocridade da beleza: a teimosia obsessiva em encontrar a forma certa.
Aos cúmplices Manuel e Janaina, por terem encontrado dentro dos poucos meios que tínhamos as melhores soluções, e que deram ao nosso espectáculo a sua bonita luz. Ao Diogo, por se ter aventurado num ritmo de trabalho alucinante sem nunca perder o brio. À Leonor, António e Miguel por terem registado tudo isto para a posteridade, e à Raquel por ter espalhado a palavra. Ao João, por me ter guiado em pensamento com o seu apurado e coeso sentido estético, mesmo sem o saber e sem estar presente.
Por fim, aos actores. À nossa palhaça-astronauta-mergulhadora Anabela, pela resistência hercúlea e por nos emprestar o seu belo palhaço triste, ao André pela graça subtil e forte do seu movimento, à Inês pela loucura e furacão contidos em tão pequena jarra, e que sempre nos atrai, ao Miguel por ser tão fiel companheiro, além de actor e músico de excelência, à Rabaça pela amizade, alegria, maturidade e consistência, e ao Pedro, descoberta tardia e bem-vinda, pela fragilidade bonita e comovente com que existe em cena e fora dela. Pela vossa infinita generosidade, talento e paciência, por terem dado mais do que alguma vez vos foi ou será pedido do vosso trabalho, com leveza e gana; por não terem perdido de vista, atrás deste chão doloroso e frio e em tantas tarefas ingratas, o motivo pelo qual fizemos tudo isto, e que o público só veio confirmar mais tarde. A sensação de termos feito algo que excede as paredes de um teatro.
Dezembro de 2021, Sílvio Vieira