EQUADOR /2023

 

Uma funcionária de limpeza de um teatro vê-se impelida a entrar num espetáculo depois de ler o seu nome na folha de sala. O compromisso dela com a encenação torna-se total após encontrar quatro autóctones que desafiam o limite daquilo que conhece e que é capaz de fazer, empurrando-a para um abismo de loucura e vingança.

EQUADOR sucede a ARENA numa trilogia de espetáculos que encontram no espaço de apresentação o seu princípio. Elabora sobre a divisão entre nós e eles, e como dessa clivagem animalesca surge a intolerância, a ausência de escuta e o medo da derradeira diferença.

Em cena de 7 a 14 de Julho de 2023 na Blackbox do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Uma criação de Sílvio Vieira.

1h50 M12

teaserimprensa e críticarider e registo • disponível para digressão

direção Sílvio Vieira
colaboração Miguel Ponte
cocriação e interpretação Anabela Ribeiro, Catarina Rabaça, Miguel Galamba, Miguel Ponte e Rita Cabaço
texto Sílvio Vieira, com excertos do elenco
cenografia Rafael dos Santos
figurinos Marine Sigaut
colaboração figurinos Sara Valdez
som Miguel Galamba
desenho de luz Pedro Guimarães
apoio ao desenho de luz Beatriz Gaspar
maquilhagem Sara Marques de Oliveira
fotografia Bruno Simão
vídeo Carlos Conceição

produção outro
coprodução Centro Cultural de Belém
residência de coprodução O Espaço do Tempo
residências artísticas 23 Milhas—Ílhavo e DeVIR CAPa
parceiros República Portuguesa | Ministério da Cultura, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa Camping & Bungalows, Moldura Minuto, SER+ Associação Portuguesa para a Prevenção e Desafio à Sida, e Coffeepaste

agradecimentos Agostinho Santos, Ângela Rocha, Beatriz Almeida, Carlota González, Clece, Fernando Luís Sampaio, João Cachola, João Calixto, Luís Sousa Ferreira, Margarida Queirós, Mariana Sá Nogueira, Pastelaria Estudantil, Stéphane Alberto, Teatro Passagem de Nível, Teatro Nacional D. Maria II, Vidrarte Benfica

O ESPETÁCULO

EQUADOR começou a ser pensado em 2020. Seria um projeto de investigação científica com a comunidade sobre o fenómeno da polarização. Dos resultados desse estudo surgiria um texto teatral que pudesse ser levado a cena sob o mesmo título. Com a entrada da pandemia, o espetáculo teve de ser adiado e, com esse adiamento, caíram uma série de parcerias das quais este dependia.

Durante algum tempo, não percebemos como poderíamos regressar a uma ideia que já parecia antiga e que só mais tarde ganhou nova vida: foi no final de 2021 (com a estreia de ARENA), que vislumbrámos uma trilogia que pudesse dialogar intimamente com os espaços de apresentação para falar, justamente, sobre a ausência de espaços para a vida.

Em ARENA, o outro — na pessoa de um astronauta que emergia de um espelho de água — era sinónimo de desconhecido, alguém por quem se pode sentir medo ou curiosidade. Impressões que a própria garagem e a sua arquitetura particular pareciam sugerir. Já em EQUADOR, assumem-se as capacidades técnicas da Blackbox como extraordinárias, sugerindo um forte contraste com as condições ruinosas sob as quais os habitantes da garagem se haviam habituado a representar. Eventualmente, o seu comportamento animalesco colide com a autoridade da empregada de limpeza daquele lugar. A passagem do tempo e o endurecimento do espírito, aqui, transformam o outro de desconhecido a intolerável.

 
 

FOLHA DE SALA

Em 2021 estreámos ARENA numa antiga oficina de automóveis em Lisboa. Durante cinco meses, ensaiámos um espetáculo e construímos de raiz um pequeno teatro no seu interior. Fizemo-lo sobretudo por acreditarmos que a nossa liberdade pode e deve ser construída, mas também é certo que nunca pediria à equipa para revitalizar um lugar votado ao abandono não fosse a vontade de protestar contra a forma como habitualmente se programam espetáculos em Portugal.

Em 2022, conversei com o Fernando Luís Sampaio (que nos convidou a apresentar este trabalho no CCB) sobre quão violentos podem ser os processos de criação, sobretudo quando a eles se segue uma “temporada” de dois dias. Apertámos a mão com sete dias, um período invulgarmente longo para esta e outras salas do país. As temporadas curtas não seriam um problema se os espetáculos que penso fossem tecnicamente simples, portáteis, ou sequer adequados à nossa estatura; mas, para o bem e para o mal, atrai-me a dificuldade. O belo — sendo subjetivo — por muito simples que pareça na sua forma final, obriga a longas e penosas investigações: o material certo, a palavra certa, a forma certa. Este processo requer um esforço sobre-humano de toda a equipa.

Uma das particularidades desta trilogia reside no facto de procurarmos o sentido dos espetáculos numa pilha de nadas, ou quase-nadas: não partimos de um texto ou de referências (além daquelas que nos habitam mesmo sem querermos); partimos, sim, de espaços “vazios”. Cedo percebemos que os lugares convencionais seriam muito mais difíceis de trabalhar que os menos convencionais, que já fazem metade do nosso trabalho por possuírem mistério. Esta Blackbox, idêntica a tantas outras, é um lugar escuro mas pouco misterioso, e foi um desafio procurar nela a dramaturgia de EQUADOR. Acredito que conseguimos, ainda assim, o aprofundamento da linguagem e da estética desbravados em ARENA, agora num espaço totalmente convencional.

Continuo a procurar a obra aberta e múltipla, que neste espetáculo se equilibra entre códigos concretos (narrativa) e abstratos (movimento, imagem e silêncio). Tento sempre fugir da pergunta “é sobre o quê?”, justamente por achar que os espetáculos são mais eloquentes que quem os faz. Durante um tempo, a ideia mais nítida consistia na colisão hostil entre quatro habitantes da Blackbox, aos quais chamamos autóctones, com uma figura de autoridade daquele teatro. Mais tarde, no início dos ensaios, esta figura ganhou forma numa funcionária de limpeza que assume fazer parte do espetáculo depois de ler o seu nome na folha de sala. Os temas centrais (autoridade e poder), foram assim suavemente substituídos pela premissa: “e se a toda a gente fosse dado um palco, o que fariam dele?”. Interessou-nos pensar sobre algumas derivações desta ideia: quem tem o direito de contar a nossa história? De que forma a atração da burguesia intelectual e artística pela classe dos “simples costumes”, económica e socialmente desfavorecida, pode ser ela mesma propagadora da desigualdade que pretende retratar? Em EQUADOR, esta funcionária é implicitamente convidada a preencher uma encenação vazia com a sua história, e eventualmente conduzida a despir a vulgar carcaça de falsidades e a revelar os cantos mais obscuros e sinceros da sua alma, alguns dos quais nunca se atreveria a expor, muito menos na presença de um público. Sentindo-se atraiçoada, acaba por cair numa espiral de loucura e crescente violência.

Situo EQUADOR num género próximo da tragicomédia: tem momentos absurdamente ridículos (para mim, pelo menos), ao mesmo tempo que se permite caminhar sobre uma paisagem violenta e sombria. Esta convivência entre o leve e o denso, da qual também a nossa vida é feita, só é possível porque atrás de cada ideia há uma equipa maravilhosa. Dedico este espetáculo a esta equipa. Em primeiro lugar, ao Miguel, que mantém tudo isto de pé e é a melhor pessoa com quem se pode jogar ping pong com ideias em vez de bolas. À Rita, que tanto estimo e admiro desde que nos conhecemos na Cornucópia, pelo que deu e continua a dar a esta história. À Anabela, que vive atormentada por já não poder fazer nada, porque tem vindo a reparar que qualquer coisa que faça corre o risco de entrar no espetáculo (é a autora das melhores partes do seu texto). À Catarina, máquina do improviso, e que tem a singular capacidade de nos infligir dor de tanto rir. Ao Galamba, presença silenciosa de humor mordaz, infinitamente multifacetado. Ao Rafael, jovem cenógrafo que conhecemos na Open Call, teimoso na vontade de seguir o caminho certo, ainda que seja o mais complexo (pintou 600 lajes de betão, pesando 2800 kg no total, porque “cinzento claro é bad e branco é good”). À Marine, força da natureza, apaixonada por coisas que brilham (“Odeio linho! Odeio bege!” ficam para a nossa história como as duas melhores frases ditas numa entrevista). À luminosa dupla Pedro e Beatriz, que estou a ponto de conhecer melhor porque o desenho de luz ainda não está feito, mas desconfio que vá ser tão incrível quanto eles. Por fim, ao Carlos, realizador genial de uma Nação Valente, e ao Bruno, fotógrafo-mergulhador, por registarem este momento para a posteridade.

Para mim, os espetáculos são como as viagens: só interessam pelo que levo deles para sempre. Sem conhecer ainda o resultado final — e para não falar das muitas memórias e gargalhadas nos ensaios — a sessão fotográfica debaixo de água, ao cair da noite, com esta equipa, jamais alguém me tira.

Sílvio Vieira

VISÃO DE OUTRO

Não raras vezes, em processos de criação, surge aquela ideia que define um espetáculo. Por vezes é uma tecnologia, outras vezes é um elemento cenográfico, uma componente luminotécnica, a linha de figurinos, às vezes uma fusão entre vários destes componentes. Ficamos então com essa distinção inscrita na nossa memória, frequentemente até em detrimento do nome d_ artista ou da própria narrativa do espetáculo: aquele espetáculo que tinha uma atriz pendurada no teto, aquele que tinha uma piscina em cena, aquele com mapeamento live do público, aquele que tinha um livro a acompanhar a cena… Agora: projetos com o Sílvio significam que essas ideias chegam à cadência da respiração. A cada novo ensaio surgem dois ou três momentos desses que, às paginas tantas, induzem um reflexo pavloviano de arrepio na espinha na equipa, momentos esses conhecidos como e ses?: e se pendurássemos todo o elenco na teia?; e se tivéssemos uma mão a arder em cena?; e se destruíssemos todos os dias um figurino? Assumindo o pânico — do ponto de vista da produção, logística e execução — que o despontar dessas eurecas provoca, devo também confessar a admiração que toda a equipa tem pela insistência na criatividade, pela defesa última do compromisso com o belo e com o inesperado, e pelo olhar mágico e onírico que tais ideias imprimem nos espetáculos que o Sílvio compõe.

Equador é um harmonioso Frankenstein, um monstro aglomerado de ideias nascidas da comédia, da beleza e do espanto, orientadas por um sentido narrativo e executadas com brio por toda a equipa técnica e artística. Loucos somos nós, que embarcamos na loucura do louco. Equador significa habitar, por duas horas, o universo de possibilidades onde vive o seu criador: o sítio de fadas e unicórnios onde todas as ideias são possíveis se bem trabalhadas, investigadas, debatidas e orçamentadas. A magia requer muito trabalho; a beleza e a simplicidade também, creio profundamente nisto. É por isso que uma criação como Equador nunca revelará, através da leveza do seu aspeto, da sua comicidade e ingenuidade, todo o peso, em pensamento e trabalho, que sustenta os mecanismos do espetáculo.

Neste espetáculo, como já indiciado em Arena, operam-se uma diversidade de truques e malabarismo criativos que embrulham, em última análise, um núcleo agridoce que está no centro de tudo. Não se deixe o espectador enganar pelo tom jocoso que conduz grande parte do espetáculo: até os coloridos e festivos balões de hélio, nas feiras populares, estão sempre ancorados a uma velha e encarquilhada botija. Nesse sentido, é o vale amargo e triste, aquele fugaz — ou assim se quer acreditar que seja — momento de desesperança na condição humana, onde o mito de Sísifo se concretiza e a lente da misantropia desgasta as cores do mundo, é esse âmago frio que justifica, sustenta, ancora e potencia a comédia que lhe serve de cobertura.

Equador parece-me, a par dos anteriores trabalhos do Sílvio, uma profunda investigação sobre a alteridade, sobre o que significa a diferença essencial que aparta o nosso interior daquilo que nos é exterior. Nesta nova e ambiciosa obra recicla-se simultaneamente a admiração e a aversão pelo papel que o outro tem em cada um de nós, com a devida exploração das consequências positivas e negativas que esse contacto possa ter. Essa vontade de compreensão e essa constante persecução daquilo que o outro provoca no eu está impresso em todas as moléculas das criações do Sílvio e, nem de propósito, cristaliza-se no nome da própria estrutura-casa que sombreia o seu percurso artístico: outro.

miguel ponte

 

EXÍLIO DE SI MESMO

Uma pandemia como a que vivemos vai além da guerra no processo de exclusão do outro: não existe um nós, apenas um eu. A figura do outro torna-se cada vez mais repulsiva pelo que possa carregar no corpo. Pergunto: se as ciências sociais assumiram um papel fundamental na reconstrução pós-guerra no século XX, combatendo o ódio e ignorância através do conhecimento, como nos poderão valer agora?

Para já, é pertinente lembrar como a assembleia, acontecimento colectivo em carne e osso — em teatros, igrejas ou salas de aula — resistiu e continuará a resistir na modernidade. A palavra contacto tem um peculiar parentesco com contágio e etimologia em toque, por sua vez de origem onomatopaica no som toc que fazem as coisas quando batem umas nas outras. A invenção do telemóvel atribuiu um novo e irónico sentido a esta palavra, mas se é verdade que o espaço virtual tem vindo a cavar cada vez mais fundas as trincheiras do isolamento, também é curioso como numa chamada telefónica se entrevêem vestígios de contacto físico — a forma como gesticulamos ou andamos, tentando dar corpo à voz, talvez seja um sinal de que tocar é não só natural como indispensável.

Julho de 2020, Sílvio Vieira

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